Tratam-se de experiências universais transversais a diferentes épocas e localizações geográficas, mas, como pano de fundo, existe sempre a examinação do poder exercido pelos mais fortes sobre os mais fracos, em que os mais fortes podem ser tanto poderes locais como poderes coloniais
Por David Calahan *
Foi com muito agrado e surpresa que recebi a notícia de que o Prémio Nobel da Literatura deste ano foi atribuído a Abdulrazak Gurnah. O meu interesse no seu trabalho já vem de há muitos anos, e quando lançámos o Mestrado em Estudos Ingleses na Universidade de Aveiro, em 1996, incluí o seu livro Paradise (1994) no programa da minha disciplina, e acabei por mantê-lo em todas as edições do mestrado (entretanto extinto), tal era o seu sucesso junto dos alunos. Ainda hoje, Paradise é a obra de Gurnah que os estudiosos da literatura pós-colonial costumam conhecer, quando conhecem alguma. O artigo que escrevi sobre o livro, e que foi incluído na bibliografia de leituras acerca da obra do escritor no site do Prémio Nobel, teve origem precisamente nas aulas que dei acerca deste livro.
Gurnah escreve principalmente sobre a experiência dos africanos durante o período colonial na Tanzania (incluindo a ilha de Zanzibar, de onde é oriundo), que faz fronteira ao sul com Moçambique. Também escreve sobre a experiência dos imigrantes e dos descendentes de imigrantes em Inglaterra, onde vive e viveu durante a maior parte da vida, exilado por motivos políticos. Os romances dele costumam desenvolver-se no século XIX ou princípios do século XX na África oriental. São livros que contêm histórias de amor, de traição, de sujeição, de sonhos gorados ou só parcialmente realizados. No fundo, tratam-se de experiências universais transversais a diferentes épocas e localizações geográficas, mas, como pano de fundo, existe sempre a examinação do poder exercido pelos mais fortes sobre os mais fracos, em que os mais fortes podem ser tanto poderes locais como poderes coloniais.
Embora haja muitos autores que escrevem sobre as experiências deste período da colonização europeia, as obras de Gurnah destacam-se de muitas outras porque nelas é patente uma oposição à ideia de que os seres humanos se identificam primeiramente em função da sua etnicidade ou nacionalidade. Gurnah duvida inclusivamente do conceito de cultura étnica ou nacional. Nas suas obras, a ideia de que pertencemos a uma única e determinada cultura é sempre apresentada como simplista e redutora; as histórias de Gurnah defendem que somos seres humanos primeiro e que devemos ser julgados como seres ético-morais. Porém, os sistemas de educação e outras estruturas institucionais, bem como os discursos nacionalistas a todos os níveis, insistem em que nos concebamos em termos mais fixos e menos flexíveis. O desafio aos lugares comuns sobre a identidade cultural que nos rodeiam a todos, e a investigação sobre discursos que ainda teimam na solidez das nossas supostas raízes culturais são questões maiores dos Estudos Culturais e Humanísticos, onde há muito se vem insistindo que existimos numa espécie de fluxo cultural que mistura aspetos de outros fluxos culturais, e que o que mais nos define e condiciona as nossas vidas é a nossa relação com o poder, com as estruturas e com as forças que nos sujeitam às suas prioridades.
Comecei este texto dizendo que fiquei agradado, mas também surpreendido quando Gurnah foi agraciado com o prémio, porque receava que o mundo não reconhecesse o mérito da sua obra como devia. Apraz-me constatar que eu estava errado e que a atribuição do Prémio Nobel da Literatura de 2021 consagrou uma voz sábia e independente da literatura mundial.
* Professor do Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro (UA). Artigo originalmente publicado no site UA.pt.
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