Hoje temos uma história triste para contar. Não só triste, mas capaz transportar atrás de si decepção, desânimo, mesmo ira e raiva. O que nos motiva a intervir positivamente neste pedaço de terra que nos coube cuidar não se traduz apenas que pode ser visto, é também o resultado das forças que animam as almas, só daí brotando essa energia que parece superar todos os obstáculos e dificuldades. Mas será que todos, mesmo?
Por Paulo Domingues e Jorge Morais *
O aviso já tinha sido feito, mas foi, talvez, subestimado: uma equipa ao serviço do titular da rede eléctrica de média tensão iria realizar trabalhos de gestão de combustíveis sob a linha que chega ao Feridouro e que daí segue para Agadão. A empresa foi por nós contactada. Um engenheiro ligou. Afirmámos a nossa posição sobre essa famigerada lei de gestão de combustíveis (D.L. nº 124/2006): é, pelo menos em alguns dos seus enunciados, uma lei absurda, sem sustentação técnica.
Pela nossa parte, a única reacção que pode merecer é a que qualquer lei absurda deve merecer: a desobediência! Porque, caso fosse “obedecida”, estragos enormes e inúteis tinham já sido praticados na mancha florestal que praticamente abrange toda a vertente sul da aldeia do Feridouro. O engenheiro da referida empresa pareceu compreensivo: que também partilhava de reservas em relação à lei, e que até estava disponível para, não a cumprindo, pelo menos integralmente, assinar com o titular da propriedade, neste caso a Quinta das Tílias, um termo de responsabilidade em que este assumia (ou co-assumia) quaisquer consequências dessa decisão.
Mas a verdade é que, aos nossos olhos, tal promessa não foi cumprida. Chegada a equipa ao terreno, perto de um local onde a linha atravessa o Vale de São Francisco, foi autenticamente dilacerada uma das mais belas manchas de carvalhal que aí existem, tendo sido cortadas as maiores e melhores árvores. Árvores com pelo menos 30 anos, que nós não plantámos, pois que surgiram espontaneamente em antigas leiras cultivadas, mas que foram cuidadas, acarinhadas e admiradas, desde que essas terras foram adquiridas em 2016.
Ao cair, num local em que o elevado declive da antiga encosta foi, ao longo dos séculos, esculpido em socalcos com grandes muros de pedra a dividi-los, as árvores de um dos socalcos superiores, onde estavam as árvores maiores, caíram num inferior, que tinha árvores mais recentes, destruindo-as implacavelmente. Outras árvores, mesmo fora da “faixa” alvo, foram seriamente danificadas devido à queda das árvores cortadas. Constatar aquele cenário, de árvores enormes, algumas com 25 metros de altura, caídas e tantas outras danificadas, num local de particular beleza e em melhores condições do que a maior parte de outros em que trabalhamos, foi, à sua medida, tão demolidor como a própria devastação que perante os nossos olhos se apresentava.
Demolidor porquê, perguntarão? Por causa de uma dúzia de árvores cortadas debaixo de uma linha de eléctrica? E respondemos: sim, demolidor, não simplesmente pelas consequências, mas pela inutilidade absoluta do acto praticado. O risco que estas árvores apresentavam para a propagação de um incêndio era virtualmente nulo, tão nulo como a nula competência dos legisladores quando, no conforto dos seus gabinetes em Lisboa, resolveram que eram as árvores as responsáveis pelas calamidades incendiárias que periodicamente assolam o território. Pelos menos estas árvores, já que, quanto a outras bem conhecidas, nem nós pomos quanto a isso “as mãos no fogo”.
Mas, e se os factos descritos forem apenas uma pequeníssima amostra do arboricídio que provavelmente se está a cometer por todo o país, este ano acentuado pela seca que se está a viver e alimentado pelo medo de que novas calamidades possam engendrar mais bodes expiatórios, para além de verdadeiros responsáveis?
Compreendemos que toda a sociedade esteja neste grave momento preocupada e indignada pela guerra, e nós também partilhamos dessa indignação. Mas o que se está a passar aqui mesmo também é uma guerra, não uma que se trava com armas de fogo contra pessoas e contra cidades, mas uma que se trava com moto-serras contra árvores e bosques. E uma que se trava já há demasiado tempo sem que forças significativas contra ela se tenham levantado.
Ousamos a partir deste recanto fazer ouvir a nossa voz aos mais elevados responsáveis pelo governo do país, o Senhor Primeiro Ministro e o Senhor Presidente da República, para que tomem medidas urgentes para corrigir essa lei que a todos devia envergonhar e que tantos danos está a causar ao nosso património natural, e talvez mesmo ao nosso património humano, pois uma sociedade que não é estimulada e ensinada a prezar as árvores, para além dos cifrões que elas representam, não é uma sociedade verdadeiramente digna do pedaço de terra que pisa.
* Cuidador da Quinta das Tílias e presidente da Direcção da Associação Cabeço Santo, respetivamente. Mais informações em https://www.facebook.com/cabecosanto
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