É mesmo caso para dizer: “Aceite e siga em frente, pois vai doer menos!” Mas não estou certo de ser bem assim, com pouca dor. Vai doer a quase todos, e uma das variáveis, entre muitas, não controláveis é a energia, assim como a sua produção, utilização e preço.
Por José Carlos Pereira *
A geoeconomia e a geopolítica mundial têm grande impacto em muitas das cadeias de abastecimento mundiais, especialmente a automóvel, que dividiu as várias especialidades de componentes por muitas regiões. E o que isto significa para o setor automóvel? E para a mobilidade? Significa que muita coisa mudou e vai mudar novamente.
Embora já todo o ecossistema do cluster automóvel estivesse em profunda transformação, numa aceleração para a eletrificação, agora temos um novo dado para colocar ainda mais entropia no sistema: a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. E o que está em causa não é apenas o preço dos combustíveis fósseis e também da energia elétrica. É bem mais do que isso. E é tão significativo que o outlook de produção de automóveis para 2022 e 2023 já indica uma contração em 5 milhões de unidades (Auto forecaster S&P Global Mobility). Mais precisamente, estima-se que o número de veículos produzidos caia para 81,6 milhões em 2022 e para 88,5 milhões em 2023.
E a causa adicional será o gás de néon ucraniano e o paládio russo, que são parte fulcral na fabricação de chips (entre outros). São significativas as disrupções em muitas das cadeias de abastecimento, seja no setor automóvel seja noutros. As cadeias de valor globais foram realmente colocadas à prova nos últimos dois anos de pandemia e estão a ter o seu último teste de resiliência com esta guerra, embora – sejamos honestos – com muita especulação de diversos atores económicos.
Podemos mesmo afirmar que aquilo que observámos como volátil durante a pandemia passou a não ser confiável; a incerteza vai para além da insegurança e desagua em ansiedade; e a ambiguidade de muitas variáveis não controladas traduz-se, agora, em grande incompreensão.
Este conflito já está a causar problemas logísticos sérios, bem como a escassez de componentes críticos. E, note-se, podemos ainda estar no início de algo duradouro, sabendo quando começou, mas ignorando quando termina. Espera-se que a produção automóvel na Europa sofra a maior diminuição como região em análise, de acordo com a S&P.
Cerca de 45% das cablagens elétricas fabricadas na Ucrânia são normalmente exportadas para a Alemanha e Polónia, colocando os fabricantes alemães em elevada exposição. Marcas como a VW e BMW estão entre as mais impactadas desde o início da invasão. A isto, temos de juntar um número significativo de fábricas a parar na Rússia, assim como a quase totalidade das marcas a assumirem as perdas das vendas no território russo, pois suspenderam a sua presença no mercado.
E como fica a mobilidade mais verde e suave com estes preços dos combustíveis? Julgo que sai beneficiada no curto prazo por mudança de comportamentos, embora muitos dos hábitos de deslocação não mudem de uma forma tão rápida como mudam os preços. Ou, no limite, que se tornem permanentes no futuro.
Vejamos, como exemplo, o preço das baterias a cair nos últimos 20 anos. Facto é que, desde 2020, o níquel, o lítio e outros metais que as compõem têm subido de preço de forma bastante significativa (o módulo mais caro de um carro elétrico, 30% do preço total em média, é a sua bateria). E a guerra veio introduzir ainda maior especulação. Ou seja, os preços vão provavelmente demorar a baixar. E, sendo assim, menos acessíveis à maioria da população. Em média, em termos de modelos comparáveis em preço, um carro elétrico é 35% mais caro que um carro com motor a combustão.
Além disso, temos também o aumento do preço por kWh (quilowatt-hora) de energia elétrica no mercado grossista, no meio de uma grave crise energética na Europa (pode ainda nem ter sido notado o impacto). Junte-se a falta de carros novos, em que as entregas estão com meses de espera. Será que a mobilidade elétrica vai passar por um período de pausa ou arrefecimento no crescimento?
Note-se que, segundo alguns especialistas, ao ritmo em que estiveram as vendas de elétricos em 2020/2021, esperava-se que o mundo dos automóveis 100% elétricos chegasse a uma paridade de preço, com os mais convencionais veículos a combustão, em 2024 ou 2025. E, provavelmente, já não vai ser assim. Para além disso, esperava-se que em 2030, em termos de quantidades produzidas, 50% da produção da maioria das marcas já fosse de modelos elétricos. Para os mais distraídos, a meta a atingir para a frota de passageiros em Portugal, até ao final desta década, seria de 30% de veículos elétricos.
São, então, tempos de transição profunda entre épocas e entre ciclos de tal maneira transformacionais que – como já referi noutro artigo aqui na Revista, exagerando – são quase uma mudança de era (e não uma era de mudança!).
As mudanças estruturais ao nível do modelo social, político e económico terão um forte impacto na velocidade da eletrificação e de novos comportamentos de mobilidade. Estejamos atentos, aprendendo a aprender, com grande adaptação, com um pensamento antifrágil (mais do que resiliente!), mas também conscientes de que momentos ‘menos bons’ sempre precederam momentos bons.
P.S.: Aproveito esta oportunidade para deixar um abraço especial ao povo ucraniano, enviando força, esperança e muita fé!
* Artigo publicado originalmente no site Greenfuture.
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