A promoção excessiva, a falta de estratégia e ausência de visão, emoção e razão, estão a hipotecar o futuro das cidades em todo o mundo.
Por Vitor Pereira *
Quando o canadiano Kevin Brauch, famoso apresentador de TV especialista em bebidas de todo o mundo, pisou o palco do Smart Funchal, em 2017, para falar de amizade, proximidade, cultura, história e outros aspectos menos tecnológicos relacionados com o turismo inteligente surpreendeu pelo sentimento que imprime quando visita um local, uma cidade, um país, mesmo que seja só para tomar uma bebida.
Kevin Brauch, como tantos outros profissionais de comunicação global do mesmo patamar (e culminando no saudoso Anthony Bourdain) confidenciou na Madeira, onde esteve pela segunda vez (a primeira para gravar o programa Thirsty Traveller dedicado ao Vinho Madeira), que é um apaixonado da convivência, da amizade e das emoções fortes. É a experiência vivida com coração que arrebata todos os nossos estímulos sensoriais. A diferença é que ele não estava a falar da primeira vez que visitou a ilha, mas falava sobre a segunda, já em 2017, sem câmaras de TV, sem guiões, sem a pressão das audiências. Falou que sentiu isso sempre que regressa aos locais onde tinha gravado, onde ficaram amigos, onde construiu relações pós programas. Mas referiu também que, muitas vezes, se sente culpado por ‘inundar’ (e destruir até) espaços, graças a uma exposição mediática arrebatadora que transforma pequenos negócios em destinos multitudinários.
Em Tequila (México), a diretora da Fundação José Cuervo – a mais antiga destilaria de tequila no mundo e uma das mais famosas – confessou a sua preocupação sobre uma crescente massificação do destino. Tequila é uma pequena cidade a uma hora de distância de Guadalajara, que, fruto da natural e óbvia conotação com a famosa bebida alcoólica, também ganhou novos fãs através do filme de animação Coco e da romantização da cultura Mariachi. Atualmente, Tequila é visitada por turistas de classe média alta (americanos, chineses, japoneses, sobretudo) que usufruem das experiências exclusivas com a natureza, gastronomia, aventura, cultura, etc. Mas, atraídos pelo álcool, também já começam a chegar grupos obviamente ligados ao “turismo de borracheira” ou “fiesta”, deambulando ébrios pelas ruas carregando os seus ‘cacharros’de barro que abastecem nos bares e ‘tiendas’.
A promoção excessiva, a falta de estratégia e ausência de visão, emoção e razão, estão a hipotecar o futuro das cidades em todo o mundo. O sector do turismo tem contribuído em grande medida para a gentrificação de cidades, a destruição da sua identidade e autenticidade. Mas quando alguém pergunta por soluções, espera sempre uma saída fácil para o problema. Por exemplo, lidar com a falta de turismo pode ser traumatizante para um político eleito pressionado pela concorrência implacável de outras cidades e destinos. E por que é que viajar tem de ser privilégio apenas de alguns?
Quando Hemingway se apaixonou pela cidade de Ronda (na imagem) e a eternizou nos seus romances, apelidando-a de forma insistente como a cidade mais bonita de Espanha, “onde todos devem ir se quiserem uma lua-de-mel perfeita”, estava longe de imaginar o que Ronda é hoje – um destino turístico em risco de se massificar, em parte, precisamente pela promoção da paixão honesta e genuína do famoso escritor por Ronda.
Graças a Hemingway, Ronda já era, antes da Internet, um destino procurado por quem lia os seus romances. Mas, agora, com a promoção intensa não do que Hemingway falou sobre Ronda, mas, muitas vezes, apenas porque era a terra de que Hemingway falava, o excesso de visitantes tornou-se um problema. E esta diferença retirou de cena a amada Ronda de Hemingway, que, se a visitasse nos dias de hoje, provavelmente, não encontraria os mesmos encantos.
Felizmente, ainda há destinos para muitos escritores descobrirem e caírem de amores. Mas, atualmente, ao contrário do tempo dos grandes romancistas, a sua elevação através da palavra ou imagem é quase uma condenação fatídica.
* Co-fundador do ZOOM Smart Cities. Texto originalmente publicado em http://smart-cities.pt/opiniao-entrevista/turismo-ameaca-2703/