Em princípios de 1975, a Comissão Administrativa da Câmara Municipal, considerando que as Touradas já tinham tido um considerável número de entusiastas em Aveiro, tendo mesmo existido uma Praça de Touros no Rossio, deliberou que se organizassem alguns destes espectáculos.
Por Diamantino Dias *
E como se tratava de uma actividade de animação, os Serviços de Turismo foram incumbidos de concretizar essa deliberação. O Vereador que presidia à Comissão Municipal de Turismo, Alberto Andrade, confessando o seu pouco saber no que respeitava aos espectáculos taurinos, encarregou-me de efectuar aquela pega que eu, por ser a primeira, decidi fazer de cernelha.
Eu gostava e gosto, se bem que moderadamente, de touradas, e, já agora, confesso que prefiro as portuguesas às espanholas, das quais tive oportunidade de ver duas. A primeira, em Valladolid, onde me encontrava a visitar Agentes de Viagens. Aconteceu, porém, que, nesse dia, se comemorava o Santo Padroeiro da Comunidade de Castela-Leão, pelo que estava tudo fechado, desde a fronteira, quase até ao País Basco e à Catalunha.
Assim, só tinha três hipóteses para passar o dia. Visitar a cidade não me interessava, porque já lá tinha estado várias vezes. Ir ao futebol também não me entusiasmou, porquanto o adversário do clube local não era uma grande equipa. Optei pela tourada, dado que nunca tinha visto nenhuma em Espanha.
Não gostei: na maior parte dos casos, as mortes dos touros transformaram-se em verdadeiras carnificinas, em que os os animais sofreram várias estocadas e só morreram, quando lhes foi dado o golpe de misericórdia, com o “descabello”.
A segunda e última tourada espanhola, a que assisti, teve lugar em Madrid; e fui a “Las Ventas” não tendo como objectivo principal ver o espectáculo, mas para conhecer a Monumental madrilena. Dessa vez, porém, os “Diestros” foram mais destros, pelo que não tive de assistir às preditas barbaridades. De qualquer maneira, continuei a preferir as nossas corridas, principalmente, quando “à Portuguesa”, à “fiesta brava de nuestros hermanos”.
Após este longuíssimo parágrafo tauromáquico, vou voltar às touradas aveirenses. Já não me recordo como, consegui-se saber o nome de um empresário desta especialidade, chamado Fernando Santos, que se dizia primo do maior toureiro português de todos os tempos, Manuel dos Santos, o qual indicou uma empresa de Lisboa, cuja principal actividade era o aluguer de andaimes, mas que também instalava bancadas e praças de toiros.
Essa firma apresentou um orçamento, que foi aceite, onde se previa que o pessoal para carga e descarga do material fosse de nossa responsabilidade. Como não havia trabalhadores camarários disponíveis para o efeito, pôs-se um anúncio nos “media” locais, anunciando a admissão de pessoal, tendo aparecido candidatos em número considerado suficiente.
Aconteceu, no entanto, que, com o desenrolar dos trabalhos de montagem, esses trabalhadores foram desistindo, até que se chegou ao ponto de ter aparecido só um, que até veio de táxi e luvas. Face a esta situação, o encarregado da obra disse-me que se nós não lhe arranjássemos, rapidamente, ajudantes em número suficiente, não poderia garantir que a Praça estivesse terminada na data prevista.
Ora acontecia não só que os toureiros já estavam contratados, mas também que até havia cartazes afixados, publicitando a primeira tourada.
Disse ao Vereador Alberto Andrade o que se estava a passar e surgiu uma solução que, nos tempos de hoje, poderá parecer bizarra e incomum, mas que, em pleno PREC (Processo Revolucionário em Curso), não era esquisita e muito menos original: pedir ajuda à tropa. Assim foi feito. A Câmara contactou o Regimento de Infantaria 10 e surgiram voluntários em grande número, que receberam a mesma remuneração que tinha sido paga aos supracitados trabalhadores.
A Praça foi instalada atrás da Cadeia, onde, mais tarde, foram edificados os primeiros edifícios da Universidade, aos quais, quando eu lá fui aluno, lhe chamávamos Catacumbas e, depois, passaram a ter a designação de Galinheiros.
Não me lembro se se realizaram duas ou três touradas. Recordo-me que uma delas foi uma “Corrida à Portuguesa” (com Cavaleiros e Forcados) e de que de um dos Grupos de Forcados fazia parte o conhecido negociante aveirense do ramo das sucatas, Manuel Marques Pedrosa, que, curiosamente, tinha sido Seccionista de Andebol do Beira Mar, quando eu era o treinador.
Nessa altura, convidou-me, várias vezes, para ir com ele aos treinos do Grupo, mas eu respondia-lhe, sempre, que só pegava toiros de faca e garfo, ou seja, já amanhados em bifes ou costeletas. E pode crer, quem nunca provou, que são um óptimo petisco.
Pois nessa Corrida, o forcado Pedrosa fez uma pega de caras, aguentando-se, na córnea, desde meia praça, até bater com as costas na trincheira. Houve quem dissesse que o primeiro Ajuda o tinha auxiliado muito no momento da junção. Mas eu teria gostado de ver esses críticos meterem-se à frente de meia tonelada de músculos, com dois cornos, a correr na sua direcção.
Agora, vou, finalmente, passar a falar sobre a Tourada, cuja recordação me levou a escrever este artigo. O cabeça de cartaz era o Matador português, nascido em Moçambique, Ricardo Chibanga. Por casualidade, estava programado um comício do PSD, com Sá Carneiro, o qual se realizaria no vizinho Pavilhão do Beira Mar, à mesma hora. Não sei, exactamente, qual era a data, mas estava-se nas vésperas das Eleições para a Assembleia Nacional Constituinte, que se realizaram no dia 25 de Abril.
As bancadas estavam cheias e, quando entrou o primeiro Cavaleiro, houve uma certa agitação entre a assistência. Quando o toiro saiu pela porta dos curros, um número significativo de pessoas levantou-se e saiu.
No fim da Sorte a Cavalo, procurei saber o que é que se tinha passado e os porteiros informaram-me que se tratava de gente que tinha entrado a pensar que era ali o comício e que, quando viram que se tinham enganado, se tinham ido embora.
No fim da Tourada, que agradou ao público, vieram dizer-me que Chibanga se tinha esquecido da espada, no local reservado para os artistas guardarem os seus pertences. Como sabia que ele estava hospedado no Hotel Arcada, actual Hotel Aveiro Palace, resolvi ir entregar-lha, de imediato.
Quando peguei na pequena espada, senti que era muito leve, porque tendo sido o meu padrinho e o meu pai oficiais do exército, já tinha tido na mão, muitas vezes, esse tipo de armas. Verifiquei que o pouco peso se devia ao facto de, sendo ela só utilizada durante as Cortesias, a lâmina não ser de aço, mas de uma espécie de lata.
Pus-me a caminho, a pé, e, a determinado momento, começaram a passar por mim viaturas com os participantes no supracitado comício do PSD, que tinha, entretanto, terminado. Quando ia a chegar à Ponte Praça, deparei com muita gente, no largo passeio defronte do café, e, de repente, vi-me metido no meio de um arraial de pancadaria de que passo a explicar a génese.
Como atrás referi, o comício tinha acabado e os seus participantes tinham formado, espontânea ou programadamente, um desfile automóvel que se dirigia para o centro da cidade, provavelmente para percorrer a Avenida Dr. Lourenço Peixinho, numa acção propagandística.
Militantes do MRPP e de outros partidos de extrema esquerda, tendo-se apercebido do facto, juntaram-se, naquele local, e começaram apupar os sociais democratas. Palavra puxa piada; piada leva a insulto; insulto provoca pancada num automóvel; pancada num automóvel gera agressão física… etc. etc. etc.
Ora acontecia que alguns dos congressistas se deslocavam em camionetas de carga de caixa aberta, empunhando bandeiras e faixas, cujos cabos, por acaso ou premeditadamente, tinham uma espessura que lhes permitia, depois de desenfiados dos panos, se transformarem em sólidos e actuantes cacetes.
Eu, que não tinha nada a ver com aquilo, comecei a pensar que se alguém me visse, de espada em punho, no meio daquela enorme zaragata, pensando que eu estava armado, o que não era verdade, mas só eu é que o sabia, me mandaria um par de pauladas que me deixariam sem conserto.
A minha primeira ideia foi meter a espada por uma perna das calças abaixo, mas, no meio da confusão, não consegui. Depois, lembrei-me que a lâmina não era rija e encostei-me à parede, de costas para as pessoas, dobrei-a, meti-a debaixo do casaco, consegui passar para o outro lado da rua, do lado do canal, indo entregar a espada ao Espada Chibanga, explicando-lhe, porque é que ela estava naquele estado. Agradeceu, achou piada e riu-se.
Todavia, para mim, a história não tinha tido graça nenhuma, porque me tinha visto mais negro do que o Chibanga para me safar daquela alhada, que só durou poucos minutos, mas que me pareceram horas.
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)