Nas Assembleias Municipais, incluído em Aveiro, temos ouvido quase tudo, e quase tudo é falacioso, onde os alertas são arrolados como promotores de pânico social.
Por Rui Alvarenga *
No final do século XV, a Europa distinguia o tabaco como detentor de propriedades curativas, integrando a lista das mais relevantes plantas medicinais das principais publicações. Assim sendo, houve um tempo em que, o tabaco, cuja relação com o cancro e outras doenças está cientificamente provada e que, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), mata um português a cada 50 minutos, chegou a ter uma finalidade terapêutica.
Antes de 1960, ano da publicação dos primeiros estudos científicos sobre a sua relação com o aumento da incidência de cancro e outras doenças, o uso do tabaco não assustava ninguém. E se alguém contestasse a sua comercialização, seria certamente designado de rastilho de um certo pânico social.
Hoje, continua a ser socialmente aceite, mas já ninguém tem reservas quanto aos seus malefícios. O uso do tabaco é uma decisão individual e consciente. Medidas foram tomadas: aumento da informação e campanhas de prevenção, protecção daqueles que não fumam, a inibição de publicidade do produto, sendo Portugal um dos mais progressistas no espaço europeu. O Glifosato segue idêntica trajectória.
A Organização Mundial de Saúde, através da Agência Internacional de Investigação para o Cancro, concluiu que este herbicida é potencialmente cancerígeno, podendo entrar no corpo humano através da ingestão de água, alimentos ou simples inalação. Acresce que, cada embalagem esconde uma mistura de vários químicos para aumentar a sua eficácia, e destes, um número significativo não constam sequer do rótulo.
Mais importante, a questão do glifosato é apenas o levantar do véu sobre as mais de 3000 substâncias químicas utilizadas em agricultura convencional.
O Governo Português, abstendo-se na votação (1) que ocorreu na Comissão Europeia, em 2015, que autorizou a continuação do uso do glifosato por mais cinco anos, com a aprovação do Decreto-Lei nº 35/2017 de 24 de Março, retirou a permissão de tratamentos fitossanitários com recurso a produtos fitofarmacêuticos em jardins, parques urbanos de proximidade, parques de campismo, na envolvência de hospitais, locais de prestação de cuidados de saúde, residências para idosos e estabelecimentos de ensino, sendo que a proibição não contempla os trajectos para esses locais.
No preâmbulo confirma-se o alerta: “Não obstante estarem consagradas neste diploma medidas de segurança na aplicação de produtos fitofarmacêuticos, em especial, em zonas urbanas e zonas de lazer, com vista à protecção da saúde humana e do ambiente contra riscos derivados da aplicação destes produtos, a sua utilização em locais públicos de particular concentração de determinados grupos populacionais, deve ser ainda mais restringida, privilegiando o uso de outros meios de controlo dos organismos nocivos das plantas, como sejam o controlo mecânico, biológico, biotécnico ou cultural.”
Ou seja, confirma que o produto é nocivo e revela que existem alternativas. A própria directiva europeia (2), logo na introdução, previne que a pulverização “é susceptível de prejudicar significativamente a saúde humana e o ambiente, nomeadamente devido ao arrastamento da pulverização”, e que o “meio aquático é especialmente sensível aos pesticidas (…)”, sendo “necessário prestar particular atenção para evitar a poluição das águas de superfície e das águas subterrâneas através de medidas apropriadas (…)” e continuando a ler, mais do que um texto de tranquilização em relação à sua potencial perigosidade, encontramos um manifesto sobre o quão pode ser perigoso para a saúde pública.
França já assumiu o compromisso de abandonar a utilização deste herbicida até 2021 e, em Portugal, vários Municípios e freguesias já deixaram de usar o Glifosato, optando por soluções alternativas mais seguras, como o recurso aos meios enunciados no parágrafo supracitado, como a própria directiva europeia acaba por reconhecer como possibilidade, lembrando que “os Estados-Membros deverão recorrer a planos de acção nacionais que visem fixar objectivos quantitativos, metas, medidas, calendários e indicadores destinados a reduzir os riscos e os efeitos da utilização dos pesticidas na saúde humana e no ambiente e a incentivar o desenvolvimento e a introdução da protecção integrada e de abordagens ou técnicas alternativas, a fim de reduzir a dependência da utilização dos pesticidas (…)”, até porque podem decidir sobre a sua utilização sem prejuízo da aplicabilidade dos princípios relativos aos auxílios estatais.
Contudo, a maioria dos municípios portugueses, no caso de dúvida, recusam fazer prevalecer o princípio da precaução, contraditando que a base de qualquer decisão política, tratando-se de saúde pública, é evitar, por todos os meios disponíveis, a sujeição da população a riscos desnecessários.
Nas Assembleias Municipais, incluído em Aveiro, temos ouvido quase tudo, e quase tudo é falacioso, onde os alertas são arrolados como promotores de pânico social. Mas aqui o pânico social significa pânico eleitoral, ou seja, o receio que o eleitorado, passando a estar informado, perceba a inércia e a imprudência.
A fundamentação inanimada surge quase sempre fundamentada por três vias:
a) não está totalmente provado que é um produto cancerígeno;
b) a sua utilização continua a ser legal no espaço europeu;
c) uma vez que o problema pode abranger a água e os alimentos, a pulverização nem sequer é o mais grave.
Este posicionamento lembra o propósito, mais do que a proficiência, da personagem principal do romance de Christopher Buckley, Thank You for Smoking (1994). Nick Naylor, o astuto porta-voz das indústrias de tabaco, exerce com singular mestria a função de manipulação da opinião pública, revelando-se capaz de convencer e persuadir qualquer auditório da inexistência de provas científicas de que o cigarro é prejudicial à saúde.
Esta narrativa, posteriormente adaptada ao cinema (2005) por Jason Reitman, explica muito a lentidão com que a sociedade contemporânea intui, pensa e reage a este tipo de ataque. Apesar da sátira incidir sobre a indústria tabaqueira norte-americana, e o seu talento a manipular os meios de comunicação social, o mundo político e a sociedade estado-unidense em geral, a extrapolação geográfica para o espaço europeu não se revela desarmónica.
A diegese inicia com um debate, promovido por uma estação de televisão. Para além de Nick Naylor, estão presentes o jovem Robin Willinguer, ex-fumador e com cancro terminal, a directora da Associação de Pneumologia, o representante dos Serviços de Saúde e um representante do governo.
O público, completamente hostil a Nick Naylor, está sequioso por desmascarar os reais interesses da indústria tabaqueira norteamericana. Naylor, usando uma argumentação inusitada, faz todos acreditarem que o cigarro não foi o responsável pela enfermidade do jovem Robin Willinguer, no âmbito da qual profere a extraordinária afirmação: “O que é que a Indústria perderia com a morte deste jovem? Detesto parecer insensível, mas nós perderíamos um cliente. Não só esperamos, mas temos interesse em manter Robin vivo e a fumar”.
No fim do debate, Nick Naylor é ovacionado pela plateia que, visivelmente, se mostra persuadida por argumentos falaciosos, para desespero dos demais, incapazes de despertar no público a empatia conquistada por Naylor. A maioria dos autarcas portugueses não terão o charme deste personagem.
É antes a postura de impassíveis burocratas, que os impede de serem preventivos, cuidadosos, e de, no caso de dúvida, abandonarem a utilização do Glifosato.
Recentemente, a Câmara Municipal de Aveiro abateu um número significativo de árvores, alegadamente por razões de segurança. Na dúvida, abateramse árvores, mas na dúvida, mantém-se a pulverização do Glifosato nas nossas ruas. Sabemos que a ciência fala sempre a duas vozes. Neste caso, de um lado as Nações Unidas, do outro uma parte da Europa.
Mas depois de tantos estudos realizados por ambas as entidades, certo é que nenhum concluiu, sem margem para qualquer dúvida, que o Glifosato não provoca nenhum risco para a saúde humana. A utilização prossegue de forma leviana. De um lado continuarão as pessoas, do outro lado o gigante agro-químico que nos quer continuar a agradecer o uso do Glifosato.
* Vogal do PAN na Assembleia Municipal de Aveiro ([email protected])
(1) Alemanha, Bulgária, Dinamarca, Eslovénia, Eslováquia, Espanha, Estónia, Finlândia, Holanda, Hungria, Irlanda, Letónia, Lituânia, Polónia, Reino Unido, República Checa, Roménia e Suécia, que representam 65,71% da população dos 28, foram os votos positivos do Comité de Recurso da UE. Áustria, Bélgica, Chipre, Croácia, França, Grécia, Itália, Luxemburgo e Malta votaram contra, com o peso de 32,26% da população da UE.
(2) DIRECTIVA 2009/128/CE, de 21 de Outubro de 2009. https://www.quercus.pt/campanhas/campanhas/autarquias-sem-glifosato/3947-mapa-de-autarquias-sem-glifosato