SNS – que modelo para Portugal ?

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Hospital (imagem genérica).

Comemora-se sempre, com grande pomba e circunstância, o Serviço Nacional de Saúde (SNS), considerado a maior conquista de Abril! O que nem sequer contestamos. Vale a pena considerar a sua utilidade, viabilidade, sustentabilidade e gestão, mas sobretudo o seu modelo.

Por António Gentil Martins *

Ninguém duvidará da sua utilidade. Contudo, se os resultados têm sido bons, poderiam certamente ter sido melhores. Foi indiscutivelmente positiva a universalidade, mas errado o modelo escolhido, sem liberdade de escolha do Médico ou da Instituição. E penso que o melhor que tem tido o S.N.S. e o seu êxito, se devem sobretudo á qualidade dos seus profissionais, e não ao seu modelo.

Da viabilidade e sustentabilidade, a manter-se a orientação destes últimos 35 anos, duvido que alguém sinceramente ainda duvide da inviabilidade, a menos que surjam alterações muito profundas. Nem mesmo a revisão Constitucional que mudou a irresponsável gratuitidade “constitucionalmente” obrigatória para apenas tendencial, veio solucionar devidamente o problema.

Finalmente, quanto à gestão, também não nos parece razoável acreditar que deva ser mantida. Qualquer Sistema de Cuidados de Saúde num País que se pretende livre e democrático, obriga ao respeito de alguns princípios fundamentais: um deles é, certamente, a liberdade de escolha, associada á universalidade de acesso a tudo aquilo que é fundamental, e está dentro dos recursos existentes.

Esses princípios não podem deixar de ser a base do Sistema, embora saibamos que nenhum modelo é perfeito ou infalível, e terá sempre que ser adaptado às condicionantes e circunstâncias concretas de cada Sociedade, a nível nacional, regional e até mesmo local. Não será válido tratar de forma igual aquilo que é diferente. E teremos de tomar também em consideração, até as características epidemiológicas de cada situação.

Anos atrás, afirmou a então Ministra da Saúde que a liberdade de escolha é incompatível com o actual Serviço Nacional de Saúde. Se assim é então, haverá que mudá-lo !

Um dos argumentos avançados para não haver liberdade de escolha no nosso S.N.S. é que seria muito mais caro: caberá lembrar as declarações de Pedro Gomes, coordenador do CIGIC: sai mais barato cerca de 60%, pagar a produção (cirúrgica) adicional, aos Privados, em relação à produção habitual feita nos Públicos.

Uma das grandes conquistas da nossa civilização, foi o reconhecimento dos Direitos Humanos, que não são exclusivos do homem são, e se tornam-se ainda mais importantes para o homem doente, limitado na sua capacidade de defesa. É fundamental pagar quando se está saudável e não quando se está doente e fragilizado.

Na solidariedade Médico/Doente reside a essência da verdadeira Medicina, técnica e humana. E quando tanto se fala de solidariedade e de humanização, que forma melhor de humanização do que facilitar e permitir a relação privilegiada Doente/Médico.

Num Estado com preocupações sociais de equidade e justiça, o objectivo será certamente estender a todos o benefício que só alguns privilegiados têm: a liberdade de cada um ter o “SEU” Médico, e não apenas um Médico, quando não se lhe dá outra solução. A escolha deverá ser feita pela qualidade dos serviços prestados, e não pelo seu custo. Afinal o essencial é uma política de verdade, objectiva e não apenas “politicamente correcta”, para que os cidadãos possam fazer opções esclarecidas e conscientes. E temos de tomar em consideração as expectativas, os desejos, as experiências dos Doentes e o grau de satisfação das Pessoas. E, curiosamente, muitos dos grandes defensores do actual modelo de SNS, quando se encontram doentes, tendem a consultar primeiro, e sempre que podem, o seu Médico amigo e da sua confiança. Um modelo de SNS que defendem desde que não sejam atingidos…. ).

Quando o SNS foi proposto, afirmava-se que ao Estado competiria fornecer serviços de Saúde a todos, e que a iniciativa privada era apenas complementar, o que pensamos errado. O Estado deverá sim, ser regulador e garante, mas não necessariamente o prestador. Um Sistema que privilegia as Convenções é socialmente mais justo e medicamente mais eficaz, ponto de equilíbrio entre as vantagens e inconvenientes dos Sistemas Estatais e os de puro liberalismo ou negócios sem fronteiras. A Medicina não deve nunca ser considerada como negócio, mas apenas representar a justa compensação pelo esforço produzido e pelos resultados alcançados. Em qualquer dos casos não podemos considerar a saúde apenas numa ótica de despesa, já que uma população doente não é produtiva. A boa saúde representa, de facto, um bom investimento.

Todos sabem que a saúde custa dinheiro e que é cada vez mais cara, não só pelas novas tecnologias, pelos novos medicamentos, pela maior longevidade, pela melhor informação dos Doentes e suas maiores exigências, etc., etc…É evidente que as verbas atribuídas à saúde condicionam a qualidade do Sistema e terão sempre de aumentar. Se é um facto, que é indispensável reduzir ao máximo o desperdício, para manter o mesmo nível, será necessário aumentar e não diminuir, os recursos financeiros atribuídos à saúde.

E como a economia cresce mais devagar que os custos com a saúde, tem de se compreender que não é verdadeiro nem honesto, prometer, demagogicamente, o impossível: dar tudo, sempre, a todos, e a custo zero! Se a vida humana não tem preço, não é menos verdade que os cuidados de saúde custam dinheiro. É assim necessário ser esclarecido como irão ser financiadas as propostas de solução apresentadas !

Quando há alguns anos estudei o problema não pude deixar de ficar chocado que no Japão uma criança tivesse uma esperança de vida de 83 anos, uma portuguesa 77 anos e uma de um país africano apenas 40 anos. Mas a verdade é que no Japão se gastavam, por habitante, 2.131 dólares, em Portugal 1.618 e no país africano 79…… Para bom entendedor meia palavra basta….. E, se queremos a melhor saúde possível e com estabilidade, não podemos deixar de gastar mais. E, sendo também óbvio que se o Sistema actual não serve, teremos de mudar de modelo.

Pensamos que a solução ideal será a de um Seguro Nacional de Saúde, único, independente do OGE, dirigido por entidade indiscutivelmente qualificada, para o qual todos deverão contribuir de acordo com as suas posses, competindo ao Estado, com as suas verbas próprias, pagar os prémios desse Seguro Nacional, àqueles que, por manifesta insuficiência económica, não o possam fazer. Curiosamente, um Seguro Nacional de Saúde foi agora também defendido pelo antigo Ministro Paulo Mendo, na recente Reunião da Associação Portuguesa para o Desenvolvimento Hospitalar.

Esse Seguro Nacional que propomos, directamente ligado á Medicina Convencionada, seria o modelo socialmente mais justo e eficaz, com liberdade de escolha, custos controlados, fundamentalmente gratuito na altura da necessidade, e permitindo a cobertura total do País. A Classe Médica deve merecer confiança e não ser constantemente usada como bode expiatório, por demagogos e irresponsáveis argumentando (sem sequer tentarem esclarecer–se), que a liberdade escolha levaria a um aumento incomportável de consumo nos cuidados de saúde. Esses iluminados parecem nunca ter notado que nos Sub-Sistemas que existiam, com livre escolha e pagamento por Acto Médico (caso dos CTT, TLP, PSP, Ministério da Justiça, SAMS, etc.), o número de consultas era até inferior ao dos Serviços Públicos, os das então Caixas de Previdência.

A existência de Seguros Complementares será um direito, mas estes terão de ser inclusivos e irrevogáveis, e não sujeitos aos clássicos, e profundamente errados, critérios de risco, utilizados actualmente pela Seguradoras, para que assim os “prémios” se tornem mais apetecíveis.

Cada Doente deverá conhecer o que custa à Sociedade tudo aquilo que lhe é dado, bem como o médico conhecer os custos do que solicita ou prescreve, pois o que se gastar a mais, e inutilmente, num lado, irá certamente fazer falta noutro.

É indispensável o máximo rigor na avaliação de resultados. Compete à Sociedade Civil, ou seja, a todos nós, fazer as opções, conscientes contudo de que o dinheiro é limitado e só se pode oferecer e gastar o que a economia permite. Entre Cuidados Secundários e Primários há que estabelecer uma ligação segura e preferencial. Com verbas limitadas, haverá sempre que estabelecer prioridades e fazer opções, até muitas vezes dolorosas por exigirem verdade e realismo, o que, frequentemente, os maus políticos se esquivam a assumir.

A Clínica Geral é, sem dúvida, a base de qualquer Sistema de Saúde minimamente válido, sem esquecermos que a saúde é transversal e multi-factorial e que o papel da chamada Saúde Pública, fundamentalmente da responsabilidade do Estado, é absolutamente essencial, A Medicina do Estado, com Médicos funcionários, com remuneração igual para todos, e independente da qualidade e quantidade do trabalho realizado, e sobretudo sem liberdade de escolha, sofre da consequente despersonalização, insegurança e muitas vezes insatisfação, além de diluir a responsabilidade perante o doente, que se entrega à “Instituição” e não ao SEU Médico.

No Sistema Convencionado, a remuneração dos profissionais corresponderá, pelo menos tendencialmente, ao seu mérito profissional e à quantidade de esforço produzido e ao trabalho realizado, tendo uma base fixa, de segurança, a complementar pelos actos Médicos efectuados. Sem Médicos bem tratados, estimulados e com boas condições de trabalho, nunca haverá, globalmente, boa medicina. É fundamental privilegiar a relação pessoal Médico/Doente. Impõe-se valorizar o potencial humano e ter estabilidade. O acesso ás Faculdades terá de garantir a qualidade e o número previsivelmente necessário de profissionais. . E por isso defendemos ser fundamental, no acesso ao Curso de Medicina, considerar a Vocação e não apenas a Nota.

Se a Clínica Privada será sempre um direito inalienável numa Sociedade livre, também é verdade que ela não é acessível a todos, mas apenas aqueles com maior capacidade económica, não sendo assim uma solução socialmente válida e justa.

Para nós, a exclusividade obrigatória é um erro e uma limitação injusta da liberdade, após se terem cumprido os compromissos contractualmente assumidos.

Defendemos a existência de Centros de Referência, mas também que existam Serviços Hospitalares, Públicos ou Privados, com diferentes graus de qualificação e correspondente melhoria de compensação financeira, que estimule os profissionais a permanecer nos Serviços onde trabalham. E é também óbvio que é essencial a responsabilização, muito especialmente a das Chefias. Aliás consideramos fundamental que se promovam as contratações necessárias dos diversos profissionais, e se rejeite liminarmente o recurso a Empresas de contratação de Médicos ou Enfermeiros para o chamado “trabalho temporário”

As Carreiras Médicas não poderão deixar de continuar a ser valorizadas, com a progressão baseada no mérito, se desejamos Serviços com Especialistas bem qualificados. E também as Ordens Profissionais, como a dos Médicos, devem continuar a ser garantes da “Acreditação”.

É fundamental realçar o que diz o muito celebrado Relatório das Carreiras Médicas, de que foi Relator o Professor Miller Guerra e de que tanto falam os grandes defensores do actual modelo de S.N.S., que em regra se esquecem de fazer referências fundamentais ao seu conteúdo: a “saúde como investimento e não como despesa” (página 17), a “qualidade dos profissionais” (página 20), a “necessidade de aproveitar todas as potencialidades possíveis, sejam elas Privadas, de Solidariedade Social ou Estatais” (página 38), “valorizar a política de proximidade” (página 63), a “liberdade de escolha” (página 105), o “pagamento por Acto Médico”(página 193), e ainda á” acumulação com a clinica particular” (página 195) !

A profissão Médica não é mais nobre do que qualquer outra: contudo, tem necessariamente que ser diferente e colocar muitas vezes os interesses dos doentes á frente dos seus próprios interesses, como aliás bem refere o preambulo do Estatuto da Ordem dos Médicos, de 1977

Curiosamente, mas extremamente importante e mesmo fundamental, foi ver, em recente conferência, Correia da Campos, aflorar uma pergunta crucial: se seria interessante investigar a hipótese de o S.N.S. não ter sido criado e se, em vez dele, se tivesse desenvolvido um modelo de Medicina Convencionada, como o francês ou o alemão. Como estaria o País? Com maiores , iguais, ou menores ganhos em saúde? Pessoalmente não temos dúvidas ! Bismark pensou nisso em 1883 e a Ordem dos Médicos propô-lo, sem êxito, há 35 anos.

É fundamental privilegiar a relação pessoal Médico/Doente. 

No seu mais recente livro, Correia de Campos “presume umas relação bilateral de confiança e reciprocidade. Uma vez a escolha feita, reforça-a”. Impõe-se valorizar o potencial humano e ter estabilidade.

Dizer que a liberdade de escolha, que defendemos, está limitada porque se procura sempre ir onde se encontram as melhores condições técnicas, é no fundo confundir a árvore com a floresta, já porque se poderá ir, sem aumento de encargos, ao Público, Social ou Privado, igualmente pagos pela acão que exercerem. O dinheiro deve seguir a Pessoa, Doente ou não.

E mesmo que o custo fosse até levemente superior, o que acreditamos não acontecerá através do modelo responsável que propomos, não compensaria o maior grau obtido na eficácia, na satisfação e na felicidade das Pessoas, que todos dizem, e aliás bem, ser o objectivo fundamental das políticas de saúde e da acção dos Governos?

Pensamos ter sido pena que o importantíssimo trabalho liderado por Daniel Serrão em 1998, “Reflexões sobre a Saúde – Recomendações para uma Reforma Estrutural“, não tenha tido a atenção que merecia. Era certamente indispensável e útil reanalisa-lo !

É indispensável a existência de uma visão estratégica e planeamento a médio e longo prazo para o País, na qual as vertentes da saúde, da educação e da justiça são certamente vectores principais. E importa mudar comportamentos, se queremos uma Sociedade mais saudável, o que necessariamente terá de começar na infância. Importa a implementação de todo um Programa de educação e literacia na saúde, que permita aos cidadãos estarem bem informados e capacitados, para utilizar melhor os recursos disponíveis e até ajudar os outros, promover a prevenção da doença através de comportamentos correctos, alimentação adequada, exercício físico, etc., etc. e que, quando doentes, possam participar responsavelmente nas tomadas de decisão que lhes digam respeito.

Eles e os seus familiares serão sempre factor fundamental, sobretudo nos denominados Cuidados Continuados, em que o voluntariado e as relações inter-geracionais, assumem particular relevância. Devemos definir o País que queremos, e qual o caminho a percorrer para o conseguir. Sobretudo não devemos ser egoístas, e devemos sim, preocuparmo-nos sobretudo com as gerações vindouras,

Finalmente é fundamental não esquecer a Declaração de Helsínquia quando alerta para a necessidade da Saúde estar em todas as Políticas, ou seja que, de facto, deve estar nas preocupações de todos os Ministérios, de um Governo responsável.

Concluindo: Pensamos que a solução mais económica, mais satisfatória e socialmente mais justa, quer para Pessoas quer para Profissionais, é a existência de um Seguro Nacional de Saúde, único, independente do OGE, baseado em Convenções, permitindo uma medicina de livre escolha, personalizada, organizada, motivadora de progresso e qualidade, assegurando continuidade de cuidados, financeiramente comportável e realista.

Na saúde, o grande problema é que se exige mesmo a “vontade de mudar”, o que os Políticos, da Direita à Esquerda, não têm tido a coragem de fazer, com receio de perder as eleições seguintes, face á ideia, largamente propagandeada, de que o S.N.S é a joia da coroa do 25 de Abril.

A Sociedade Civil não deverá deixar de pressionar os Políticos no bom sentido, o da mudança de modelo !

Isto porque aos Médicos competirá sempre dar tudo o que estiver ao seu alcance e que entendam ser melhor para os seus Doentes.

* Médico, ex-Bastonário da Ordem dos Médicos. Artigo publicado originalmente no site Healtnews.pt.

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