Neste período de reflexão sobre os nossos concelhos e de correspondentes projetos a médio ou a longo prazo, será preocupante passar em silêncio o tema das Smart Cities. Entre as quais, em Portugal se distingue Aveiro com o projeto STEAM City.
Por Miguel Soares de Albergaria *
Trata-se da imersão nas estruturas urbanas, públicas e eventualmente privadas, de sistemas de sensores físicos (ex. câmaras) e virtuais (ex. contagem de intervenções em páginas digitais) que permanentemente recolham informação, a qual será classificada por inteligência artificial, investida da responsabilidade de tomada de decisões.
Seja pela construção de raiz de cidades inteligentes, como o PlanIT Valley que esteve previsto para o concelho de Paredes, ou como a cidade The Line anunciada no início deste ano pelo príncipe saudita Mohammed bin Salman. Seja por uma imersão gradual das tecnologias de informação e comunicação (TIC’s) inteligentes, como está acontecendo em Amesterdão desde 2009. Esta cidade constitui também um exemplo inverso à planificação top-down, tendencialmente paternalista e até autoritária que os projetos anteriores parecem ilustrar, tendo antes adotado uma orientação bottom-up, patente em iniciativas como a plataforma Amsterdam Smart City. O Aveiro STEAM City segue igualmente esta segunda orientação.
As tecnologias “imersivas” têm efeitos tanto nos seus utilizadores quanto no mundo que aqueles habitam. Mas consideremos aqui apenas os impactos que já se verificam empiricamente sobre os habitantes de cidades inteligentes. Cuja informação foi reunida por Steven Dorrestijn e Hans Voordijk num artigo publicado na revista Urban Research & Practice, 14 (1), com base nas categorias formuladas pelo primeiro desses autores. Ao que me apercebo, esta é uma abordagem em falta ou pelo menos alguma carência neste tempo inicial da implementação do projeto STEAM City. Já na edição deste jornal no dia 2 deste mês, Eduardo Natividade salientou precisamente “uma perspetiva das cidades inteligentes (…) centrada na dimensão humana”. Para cuja explicitação crítica, creio, a análise de Dorrestijn e a sua recolha de informação com Voordijk são particularmente úteis.
TIC’s inteligentes na cidade: interações e impactos verificados
O modo de interação mais verificado entre os atuais sistemas inteligentes urbanos e os respetivos utilizadores é o da disposição das tecnologias, na sugestiva designação de Dorrestijn, “before-the-eye” dos utilizadores. Esta expressão designa a interação cognitiva, em que o utilizador se apercebe ou interpreta o sentido de uma tecnologia e decide em conformidade as suas ações.
O primeiro impacto da tecnologia “diante-dos-olhos” é a orientação dos utilizadores. Nas cidades inteligentes, é o caso da gestão do tráfego pela informação das melhores rotas e velocidades seja em função da fluidez, seja em função da emissão de gases poluentes etc., conforme a hierarquia de valores dos decisores autárquicos. Também é o caso da disponibilização do cálculo de probabilidades em cada zona de comportamentos que os legisladores classifiquem como criminosos etc.
Outro tipo de impacto, mais intrusivo do que a mera orientação, é a persuasão de comportamentos. Nos exemplos anteriores, pela ativação de semáforos, ou pela ordem de envio preventivo da polícia.
Com a orientação e a persuasão, a tecnologia influencia ainda o estilo de vida. Nos mesmos exemplos, primeiramente conforme o valor da eficiência do tráfego, ou conforme o valor da sustentabilidade ambiental, e conforme o valor da segurança pública.
O segundo modo de interação que também se verifica entre as atuais TIC’s inteligentes urbanas e os habitantes e utilizadores dessas cidades é o que o filósofo neerlandês designou “to-the-hand”: a disponibilidade da tecnologia aos respetivos utilizadores, que normalmente ajustam os respetivos comportamentos ao design dos artefactos sem sequer refletirem ou decidirem sobre isso.
Nesta interação com a tecnologia que está à-mão, um primeiro impacto é o da coerção dos utilizadores. É o caso das comuns lombas contra a velocidade, ou do comando direto do sistema inteligente sobre cada veículo autónomo.
Outro impacto neste modo de interação é o da “incorporação” de tecnologias inteligentes quais extensões do corpo humano, mas que alteram as nossas rotinas práticas. Por exemplo, pela utilização de interfaces digitais, desde códigos QR acionados com smartphone até a implantação de dispositivos subcutâneos.
Enfim, a interação com tecnologias inteligentes à-mão provoca impactos subliminares. Como a sensação de se estar interconectado globalmente, ou o deslizamento do sentido de “cidadania” de uma participação ativa para uma mera responsividade consciente.
Outros impactos e liberdade
São de esperar outros modos de interação mais indireta e correspondentes tipos de impacto sobre os habitantes das cidades inteligentes. Nomeadamente, condições próprias a cada contexto com tecnologia imersiva, algum determinismo desta sobre as pessoas, e prováveis efeitos colaterais. Bem como impactos sobre as nossas conceções mais utópicas, mais distópicas, ou ambivalentes e porventura ambíguas sobre a civilização que vivemos.
No entanto, nos esperados projetos e debates autárquicos sobre a imersão de TIC’s inteligentes nos nossos concelhos, poderemos começar pelos impactos próprios às interações diretas de que já existem verificações empíricas. Particularmente, em relação à óbvia possibilidade de controlo da generalidade das pessoas pelos operadores dessas tecnologias.
Além dos impactos sempre possíveis em projetos públicos ditos de “Potencial Interesse Nacional”, como o PlanIT Valley – nomeadamente nos orçamentos de Estado e dívida pública… Mas outras pessoas comentarão melhor estes outros impactos. Aqui, ainda neste período de pré-campanha autárquica, voltaremos antes à relação entre as cidades inteligentes e a liberdade dos seus habitantes.
* Autor do blogue “Tecnologia, homem e mundo – Aberturas”
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