Na meticulosa preparação da viagem incluíra o aprender de novos vocábulos. A escolha fora determinada pela curiosidade. Agora seria mesmo capaz de abarcar o significado concreto do nome que mais interesse lhe despertara? Qual a estratégia a seguir? Ambientando-se a este planeta desconhecido, decidiu ouvir e ler.
Olga Gonçalves *
Manteve-se atento às conversas informais como aos grandes discursos. Perscrutou os grupos em tertúlia, consultou diligentemente revistas e jornais, entabulou diálogos diversos, perseverou na sua procura, não se cansou de interrogar.
A formulação do conceito apareceu envolta em “certezas absolutas” e “universalidade”. No dizer dos seus interlocutores:
MULHER – pessoa dotada de liberdade, com direito a um nascimento e uma infância felizes, a uma habitação condigna, acesso à instrução e cultura, ao exercício de uma profissão justamente remunerada, bem como ao desempenho de cargos directivos. Alguém com tempo protegido para poder ser mãe e participar na educação dos filhos, dispondo dos meios para o cuidado da saúde e a prevenção da doença. Pessoa com oportunidade de ter tempo para se valorizar, se divertir e repousar, tendo assegurados os meios de subsistência na velhice, na eventual orfandade ou viuvez. “Obrigatoriamente” elegante, eficiente, incansável, sorridente, companheira e confidente em todas as horas. Preferentemente sem chorar, lamentar-se ou estar menos bonita.
Repensando a metodologia utilizada e pondo à prova tudo o que lera e ouvira, dedicou o tempo restante a ver e observar, calcorreando os caminhos.
Da intencional deambulação fez seu próprio registo:
MULHER – ignorada como Pessoa; está acampada com os filhos, longe da terra natal, há longas semanas, sem água potável ou refeição quente; não pôde ir à escola, não aprendeu a ler, nem sabe assinar o seu nome; mesmo que soubesse não poderia votar; não tem direito a aprender uma profissão ou escolher o seu estado civil; não tem acesso a vacinação ou a planeamento familiar; não é seguida durante a gestação dos filhos nem o será aquando do parto; valorizou-se profissionalmente mas é pior remunerada e não pode aspirar a nenhum cargo de especial responsabilidade ou destaque; apenas dorme 4 horas em cada dia porque tem de assegurar 3 empregos para que seus filhos tenham o que comer; nunca lhe foi perguntada a opinião, estando destinada, “porque sim”, a ser o amparo de todos os mais velhos da família, sem qualquer ajuda; foi vendida como escrava ou trocada por mercadoria; está precocemente envelhecida, vergada ao peso do trabalho desproporcionado e impiedoso; já não chora, já não espera ou sonha, já nem sabe sorrir.
No caminho de volta, recriminando-se pela inicial credulidade, e ainda atónito com a humana incongruência, quase esbarrou no outdoor: 8 de março – DIA INTERNACIONAL DA MULHER!
Se também esbarrar num eventual outdoor, não esqueça a declaração da Poetisa na “Cantata da Paz”: «Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar» (Sofia de Mello Breyner Andresen).
* Artigo a pretexto do Dia Internacional da Mulher (8 de março). Sociedade Portuguesa de Medicina Interna (SPMI).
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