Reflexão sobre o envelhecimento

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Não vemos inseridos nos conteúdos formativos ao longo da vida, de um modo geral, nada que nos ensine sobre o envelhecimento, a lidar com a doença prolongada ou com a fragilidade e a deficiência e a combater estereótipos negativos ligados à idade ou a situações de défice cognitivo, por exemplo.

Por Maria João Quintela *

1. Desde há vários anos, múltiplas entidades vêm promovendo a formação para profissionais de saúde associados a matérias ligadas ao envelhecimento, abrangendo múltiplos profissionais, voluntários, instituições e outras pessoas que lidam com pessoas idosas e que se interessam pelo envelhecimento humano.

Tem vindo a ser chamada a atenção para a necessidade de uma evolução cultural face ao envelhecimento populacional, para a divulgação de boas práticas no quadro global da gestão integrada, humanizada e de proximidade nos cuidados e apoio à população mais idosa e lembrando que as doenças crónicas não são uma consequência inevitável do envelhecimento, mas podem em grande parte ser prevenidas ou retardadas, pelas nossas atitudes diárias e pela sociedade na forma como trata os seus mais velhos. O apoio assegurado pela comunidade, globalmente e em tempo útil, no local onde é preciso, pode ser decisivo na vontade e na capacidade das famílias para continuarem a ocupar-se dos seus parentes idosos.

Considera-se absolutamente indispensável que a abordagem sobre o processo de envelhecimento tenha em conta a sua diversidade, entre homens e mulheres e entre pessoas com a mesma idade, tendo em conta os múltiplos determinantes que influenciam o processo de envelhecimento.

2. A Declaração Universal dos Direitos Humanos refere que “o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade …” e que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos, são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. Diz ainda que “todo o ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal” .

E embora a mesma Declaração também expresse que “todo o ser humano tem direito ao trabalho, sem qualquer distinção, e tem direito a igual remuneração por igual trabalho”, ainda hoje os reformados têm visto, ao longo dos tempos, a liberdade de receber remuneração pelo seu trabalho regulada pelas mais diversas e injustas legislações, com as implicações desta situação na saúde e na qualidade de vida destes cidadãos.

Não vemos inseridos nos conteúdos formativos ao longo da vida, de um modo geral, nada que nos ensine sobre o envelhecimento, a lidar com a doença prolongada ou com a fragilidade e a deficiência e a combater estereótipos negativos ligados à idade ou a situações de défice cognitivo, por exemplo.

Ainda temos muito trabalho a fazer para conseguir que, com a idade, com a reforma, com a doença, com a discriminação pela idade, com a insegurança social e financeira, os seres humanos mais idosos tenham uma participação social estimulante que vá para além dos jogos de cartas nos jardins, do isolamento num quarto, ou da inatividade permanente num cadeirão.

Os progressos no campo da saúde e os avanços na medicina e na tecnologia médica contribuem para uma vida cada vez mais prolongada e esse fenómeno é de tal forma surpreendente que ainda não sabemos o que fazer e como lidar devidamente com o ganho em anos de vida já conquistados, e que continuamos a ganhar. Chega a parecer um “incómodo” estar-se vivo, “um peso” teimar em não morrer, uma “afronta” não aceitar pacificamente ser despojado de tudo, abandonado num qualquer hospital, sobretudo por quem espera livrar-se do “encargo” ou aceder à herança.

A divisão da vida entre a juventude em que estudamos para ser alguém, a idade adulta em que trabalhamos porque temos de ser os melhores e para sobreviver num mundo cada vez mais agressivo, imprevisível, competitivo e em que “não há tempo”, em que crescem os fenómenos de solidão e de violência em todas as idades, e por último a fase da reforma, já não são suficientes para abarcar uma longevidade conquistada.

A chamada fase da reforma, ainda apelidada de “inactiva”, ou fase dependente da ainda chamada “pensão de velhice”, não tem sido suficientemente acompanhada de programas para a educação para a solidariedade entre as gerações e para o respeito e compreensão com a fragilidade, pelo que é urgente uma reflexão profunda e uma mudança cultural e de mentalidades, que não podem ser abreviadas ou esquecidas por qualquer lei que, interferindo com o direito à vida, se esqueça que muitos direitos humanos estão por cumprir e que a falta deles determina muito da nossa vontade e de apego a este mundo.

São pois múltiplos os determinantes da saúde, do envelhecimento, da incapacidade e da autonomia e independência de cada um, ao longo da vida, na saúde e na doença, na felicidade e no sofrimento, na esperança e no desespero. E mesmo que todas as condições fossem iguais, ainda temos que contar com quem encontramos no caminho, com quem nos presta cuidados e com os princípios e normas vigentes, cuja variabilidade determina uma ainda maior dependência das circunstâncias e das vontades do momento. Essa variabilidade, nem sempre atenta às responsabilidades sociais com as pessoas, mas mais aferida às vitórias pessoais ou coletivas de imposição mais ou menos velada de um padrão de sociedade cada vez mais “selfie”, pode fazer a diferença entre ser considerada “pessoa”( como diria Simone de Beauvoir) e ser considerado um “peso” ou um “fardo”.

É de não esquecer os princípios da beneficência e da não maleficência que se referem à dupla obrigação dos profissionais de saúde para procurar maximizar o benefício potencial e limitar tanto quanto possível quaisquer danos físicos, psicológicos ou outros que possam surgir de uma intervenção médica, e minimizar os riscos.

Quantas vezes no âmbito da saúde, a nossa privacidade e dignidade são violadas, meramente por questões de gestão do escasso tempo para cuidar, de insuficiência de recursos humanos, de desigualdades sociais e de insuficiente humildade profissional? Quantas vezes violamos em saúde, o primado do doente “no centro do sistema” e a observância de um tratamento que seja proporcional, mas com o dever de aliviar o sofrimento e de prestar apoio?

Ao refletir e pesquisar sobre esta questão, não foi possível encontrar nos sites do Ministério da Saúde, e da Direção Geral da Saúde, ou outros, antecedentes de orientações, normas ou reflexões aprofundadas na matéria, o que significa que não pensamos ainda o suficiente, à medida que vamos ficando vivos mais tempo, na vida humana, como um valor e um ganho, e, assustados com o envelhecimento, olhamos erradamente para a sobrevivência como um “custo”, uma doença , um “problema”.

Não olhamos tanto para o “benefício global”, mas sobretudo para a resolução do caso concreto, como se o ser humano não merecesse um olhar de integridade e pudesse ser dividido apenas por órgãos, capacidades, competências físicas ou cognitivas individuais, forçando o ser humano mesmo incapacitado a adaptar-se ao ambiente, sem tornar o ambiente capacitante e devidamente adaptável ao ser humano.

Não se trata pois de optar pela “obstinação terapêutica” mas de criar as condições para ter sempre, manter e aperfeiçoar a capacidade de lidar com a vida do outro, sem o medo e a rejeição de uma imagem que pode ser a nossa um dia, e portanto, criar competências para acompanhar e lidar com a vida até ao fim, numa relação de humanidade e de confiança inerentes a um ato competente de cuidar, que o profissional tem hoje possibilidade de aprender, mas que o comum dos mortais, na sua grande maioria, ao longo da vida, não aprendeu.

Aliviar ou prevenir a dor, o desconforto, a depressão, a angústia, entre muitas outras situações, faz parte do lema “quando não há nada a fazer, há muito para fazer”, de Cicely Saunders, que dedicou a sua vida ao alívio do sofrimento humano, numa abordagem integral de controlo de sintomas, alívio da dor e do sofrimento psicológico, pioneira dos cuidados paliativos.

3. A II Assembleia Mundial sobre Envelhecimento evidenciou o conceito de “sociedade para todas as idades”, tema principal do Plano de Ação Internacional de Madrid para o Envelhecimento, de 2002, e definiu três eixos prioritários: pessoas idosas e desenvolvimento, promoção da saúde e bem-estar das pessoas idosas, e assegurar um ambiente propício e favorável. O envelhecimento foi pois reconhecido, há já 18 anos, uma questão para além da segurança social, devendo antes ser visto no contexto mais geral das políticas de desenvolvimento e económicas, pelo que se evidenciou a necessidade de promover uma abordagem positiva do envelhecimento e de superar os estereótipos negativos que lhe estão associados. Esta Assembleia chamou a atenção para o envelhecimento humano e demográfico, visto à luz dos direitos humanos e liberdades fundamentais, de solidariedade intergeracional e do conceito de envelhecimento ativo, reconhecendo que as pessoas, à medida que envelhecem, devem ter oportunidades de promoção de estilos de vida saudáveis, realização pessoal, de segurança e de participar ativamente na vida económica, social, cultural e política e de protecção do direito de continuarem a trabalhar, se assim o desejarem.

Esta Assembleia reconheceu que “as potencialidades das pessoas idosas são uma base sólida de desenvolvimento futuro”, e que a sociedade deve contar cada vez mais com as competências, experiência e sabedoria dos mais velhos e combater a sua exclusão e discriminação.

Será necessário dedicar mais recursos às pessoas idosas, à medida que as despesas com a saúde aumentem, para prevenir o risco de pobreza dos doentes e dos seus mais diretos prestadores de cuidados, que ainda são maioritariamente as famílias, e nestas, as mulheres, que necessitam de continuidade de cuidados de proximidade, para poderem continuar a ter vida própria, a trabalhar e a cuidar dos seus mais velhos.

* Editorial de Março do Jornal Solidariedade, artigo originalmente divulgado em http://www.solidariedade.pt/site/detalhe/13828

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