Quem tem unhas …

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Venda ambulante de peixe (foto retirada do site Restos de Coleção em Blogspot.com).

Em meados do século passado, o abastecimento de peixe ao interior do País era assegurado pelos peixeiros que compravam a sardinha e o carapau, nas lotas, e, depois, faziam as chamadas corridas em direcção às aldeias, onde vendiam porta a porta, ou às vilas em que se realizavam feiras e mercados periódicos.

Por Diamantino Dias *

Normalmente, as viaturas utilizadas eram furgonetas de caixa aberta ou pequenas camionetas, sendo característica, comum e importante, a velocidade, porquanto, quem primeiro chegasse, em especial, às feiras, era quem escolhia os melhores sítios, podendo, até, começar a vender mais caro, enquanto não chegassem os concorrentes. A tripulação era constituída pelo condutor e vendedeiras, cujo número variava em função do destino: se era para uma volta pelas aldeias, bastava uma, se era para as feiras, poderiam ser duas ou mais.

Numa aldeia da serra da Lousã, vivia um abastado peixeiro, Manuel Mateus, cuja a idade já não pedia madrugadas ao volante, nem corridas em estradas de mau piso, só de curva e contracurva, e a conta bancária permitia que contratasse pessoal para fazer o trabalho, iniciado pelos pais com um macho – em cujos alforges era transportado o peixe – e continuado por ele e pela mulher, primeiro, com uma carroça puxada por um garrano e, mais tarde, com veículos motorizados.

Um dos seus condutores era o Zé Moreira, que tinha voltado da tropa com carta de condução de pesados e ligeiros, mas pouca vontade de se agarrar de novo à enxada, para cavar, de sol a sol, a troco de vinte e cinco escudos (0,11€), a seco ou vinte escudos (0,09€), com direito à refeição do meio dia. Era um rapaz trabalhador, inteligente, com vontade de progredir na vida e cedo se apercebeu que os preços especulativos, a que se vendia o peixe, lhe permitiriam fazer, com rapidez, uma grossa maquia. O problema era comprar a furgoneta. Depois de muito falar com o pai, pequeno agricultor, conseguiu convencê-lo a ser fiador num empréstimo bancário. De seguida, foi falar com o patrão.

– Ti Manel, tenho pensado muito na vida e pensei começar a trabalhar por conta própria…

– A fazer o quê, Zé?

– Patrão, eu estava a pensar no negócio do peixe, porque já o conheço.

– Então e o carro?

– Já tenho uma carrinha em segunda mão apalavrada e o meu pai vai ficar por mim, no banco.

– Acho bem rapaz, vai para a frente que eu também comecei por baixo e era mais novo do que tu. Só te digo uma coisa. Faz as tuas voltas, mas não te metas nas minhas.

– Mas então como é que eu poderei trabalhar, se o patrão, com as suas três furgonetas, mais a camioneta, faz todas as aldeias em redor.

– Esse problema é teu. É verdade, espero que me dês tempo para arranjar quem te substitua.

– Com certeza, patrão.

Três semanas depois, Zé Moreira começou a trabalhar, procurando não entrar na zona de Manuel Mateus, mas cedo verificou que tal era impossível, porquanto, excepto algumas aldeolas longínquas e quase desabitadas, tudo estava incluído nas voltas do ex-patrão, restando-lhe só as feiras, o que era manifestamente insuficiente. Assim, passou a vender na sua antiga volta, tendo sido recebido com satisfação pelos habitantes que gostavam dele e tinham começado a embicar com o seu substituto.

Pouco tempo depois, recebeu um recado de Manuel Mateus para ir falar com ele.

– Zé, estou muito arrenegado contigo. Então eu avisei-te para não entrares na minha zona e tu andas a fazer a volta do norte!

– Ti Manel, eu bem tentei, mas com o que sobrava eu não podia fazer face aos encargos com o Banco, comprar o peixe e o gasóleo e pagar as outras despesas que vossemecê bem conhece.

– Tivesses feito essas contas antes de te meteres neste negócio. Aviso-te, pela última vez, para não te meteres nas minhas voltas, se não tens que te ver comigo.

– Ti Manel, tem que compreender que todos temos direito à vida e que alguns sítios, a que agora chama seus, também já foram doutros. Vossemecê já tem muito e estas territas, onde eu trabalho, não lhe fazem grande falta. Deixe que lhe diga que, agora que tenho guitarra e que a sei tocar, ninguém me vai impedir de o fazer.

– É o que veremos Zé, mas, se continuares na tua, vais aprender que não basta ter guitarra e saber tocá-la. Que também é preciso ter unhas para o fazer. Vai-te embora e pensa bem no que te estou a dizer.

O Zé veio para casa a matutar no assunto e, concluindo que estando dentro da lei nada de mal lhe poderia acontecer, continuou com as vendas, onde já o estava a fazer.

Oito dias depois, Manuel Mateus comprou uma furgoneta nova, igual à do Zé Moreira, contratou um condutor e um ajudante, sendo este um brutamontes local especialista em pancadaria, e disse-lhes:

– A partir de amanhã, todos os dias, às quatro horas da madrugada, vocês vão estar perto carrinha do Zé Moreira. Quando ele arrancar, seguem-no; se ele for para a lota da Figueira ou para outra qualquer, também vão; se ele fizer uma compra, compram exactamente o mesmo peixe, custe o que custar; quando ele partir, vão atrás dele; quando ele parar para vender às portas, vendem por metade do preço que ele fizer; se ele for para uma feira, descarregam para o meu carro que lá estiver; se ele se vier embora sem vender tudo, vocês carregam, de novo, mais ou menos o mesmo peixe e seguem-no, para o caso de ele vir para as vendas pelas portas; se ele vier para casa, descarregam no meu armazém. E, agora, ouçam mais uma coisa muito importante: nunca lhe respondam, diga ele o que disser, nem se metam, nem se peguem com ele.

Esta perseguição tornou insustentável, dentro de muito pouco tempo, a situação económica de Zé Moreira. Só vendia nas feiras que eram muito poucas e o fundo de maneio, que provinha da parca bolsa do pai, esgotou-se rapidamente. Desesperado, foi queixar-se à Guarda, mas quando lhe perguntaram se os perseguidores o tinham insultado ou lhe tinham feito ameaças, teve que dizer que não. Em seguida, foi consultar um advogado que lhe explicou que era um problema de concorrência, pelo que não se poderia tomar nenhuma atitude.

Por fim, Zé Moreira teve que se desfazer da furgoneta e voltar para os trabalhos agrícolas, jurando que, um dia, se haveria de vingar, e o pai foi obrigado a vender um pinhal e a melhor terra de semeadura, para pagar ao Banco e demais credores do filho. A notícia desta desavença acabou por chegar ao conhecimento dum primo afastado do Zé, emigrado, há muitos anos, no Brasil, o qual, na sua juventude, tinha tido problemas com Manuel Mateus, os quais começaram com horários de rega e acabaram à sacholada.

A carta de chamada veio e Zé foi trabalhar como motorista, numa empresa de Santos de que esse parente era sócio, a qual se dedicava ao transporte de produtos alimentares para o interior do país. O entretém de Zé, durante essas longas e monótonas viagens, era congeminar planos para se vingar da pulhice que lhe tinha sido feita. Trabalhando noite e dia, foi conseguindo juntar dinheiro, parte dele enviado para Portugal para pagar o que tinha ficado a dever aos pais.

Quando verificou que tinha capacidade financeira para encarar a hipótese de trabalhar por conta própria, comprou um velho camião, com a ajuda do parente, que apreciava bastante a sua capacidade de trabalho e vontade de ser alguém, e, ao fim de uns anos, tornou-se dono de uma pequena frota que lhe conferiu um novo estatuto social, deixando de ser o Zé Moreira, para ser o senhor Santos Moreira. Entretanto, tinha feito um bom casamento que aumentou largamente a sua capacidade económica.

Nesse momento, os planos de vingança já se tinham refinado, passando da criação de uma empresa de distribuição de pescado moderna e bem equipada que arrasasse o negócio do Manuel Mateus, plano este que tinha o grande inconveniente de exigir a sua presença, pelo menos numa primeira fase, para a sua aparição como grande benemérito, com direito a placas públicas, na terra natal, donde partira sem cheta e endividado, marcando bem, desta maneira, a sua actual superioridade sobre o Manuel Mateus, pessoa malquista por grande número de conterrâneos. Informou-se e soube que os principais anseios da Paróquia e da Freguesia eram, respectivamente, a substituição do telhado da igreja e o arranjo do altar-mor e a construção de um Centro de Dia. Feitas as contas, estes encargos eram viáveis, pelo que resolveu vir à terra para falar com o Pároco e com o Presidente da Junta, mas sem se fazer anunciar.

Chegado a Lisboa, alugou um automóvel topo de gama e dirigiu-se à sua aldeia, onde nunca mais tinha voltado, depois da morte dos pais. Quando chegou, a meio da tarde, viu várias pessoas vestidas de preto e concluiu que deveria haver um enterro. Parou o carro e perguntou a uma rapariga quem tinha morrido, tendo-lhe sido respondido que tinha sido o Ti Manel Peixeiro.

De repente, apercebeu-se de que não poderia concretizar um dos grandes objectivos da sua vida: vingar-se da sacanice que lhe tinha sido feita. E sentiu um grande vazio e frustração. Fechou o vidro fumado da janela, seguiu até ao largo das Alminhas e fez meia volta saindo da aldeia, onde já nada o prendia, a caminho de Lisboa, com a intenção de apanhar o primeiro avião para o Brasil, pensando que, mais uma vez, tinha tido a guitarra na mão, mas que quem tinha tido unhas para tocar os últimos acordes tinha sido o Manuel Mateus.

Nota – O autor não escreve segundo as normas do actual Acordo Ortográfico.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).

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