As belgas desfizeram-se em desculpas e disseram-me, entre muitas outras coisas, que nunca mais se esqueceriam daquele passeio. Nem eu!!! E posso escrevê-lo com toda esta convicção, porquanto, durante estes sessenta e tal anos, este episódio tem-me vindo com alguma frequência à ideia, por vezes, com tal riqueza de pormenores e intensidade que volto a viver, com a genica dos meus vinte e três anos, todas as peripécias que acabo de narrar.
Por Diamantino Dias *
Nota prévia explicativa
Entre 1957 e 1970, o único funcionário da Comissão Municipal de Turismo de Aveiro, que se fazia entender sem ser em português ou “portuñol”, era eu. Acontecia, porém, que não podia permanecer muito tempo, durante os primeiros anos, no Posto de Informações – situado no meio do Rossio, até 1959 e, depois, na avenida Dr. Lourenço Peixinho –, porque, por um lado, sendo Fiscal Informador dos Serviços de Propaganda e Turismo, tinha como principal função verificar a cobrança do Imposto de Turismo, nos hotéis, pensões, restaurantes e casas de pasto, pelo que cumpria um horário especial para poder visitar aqueles estabelecimentos, especialmente à hora das refeições principais. Por outro lado, sendo poucos os funcionários administrativos da Câmara – no costumeiro passeio anual, cabiam todos, incluindo o pessoal dos Serviços Técnicos, em duas das lanchas do Turismo, cuja lotação conjunta era só de quarenta e sete pessoas –, o chefe da Secretaria encarregava-me de executar várias tarefas burocráticas que nada tinham a ver com Turismo. Assim, quando um turista necessitava de algo mais do que o constava do folheto que lhe era entregue, uma das minhas duas colegas telefonava-me para a Câmara (não havia telemóveis); se eu lá estivesse, pegava na bicicleta pasteleira que me estava distribuída e, breves minutos depois, apresentava-me no Turismo, para exercer a minha segunda predita função: Informador.
Parêntese matrimonial
(Já agora, vou abrir um parêntese, porque me veio, de repente, à ideia algo que nunca me tinha ocorrido. Eu guardava o referido velocípede, no rés-do-chão do edifício dos Paços do Concelho, junto do PBX, e, muitas vezes, aproveitava para meter conversa com a telefonista, com quem acabei por casar há cinquenta e nove anos. E, então, não é que me lembrei, neste momento, de que o meu antecessor, no cargo e no uso da bicicleta, se casou com a telefonista que a minha futura mulher tinha ido substituir! Fui o último detentor do supracitado cargo e, entretanto, o PBX foi instalado nos andares superiores, pelo que só dois casos não serão suficientes para comprovar uma teoria que chegou a aflorar à minha mente, a qual seria: “A influência da bicicleta no casamento dos Fiscais Informadores de Turismo com as Operadoras Municipais de PBX”.)
Passeio quase trágico-lagunar
Não posso precisar a data, mas estou quase certo que foi em meados de Setembro de 1959. Tinha acabado de chegar à Secretaria da Câmara, depois ter visitado alguns restaurantes, à hora do almoço, quando recebi uma chamada de uma das minhas colegas a dizer que a lancha pequena – CITA 3, de sete lugares – ia sair para a Torreira. Chamei a atenção para o facto de se prever mau tempo; responderam-me: “O que é que você quer? São duas francesas que querem ver os batôs. O que é que eu havia de fazer?”. Respondi que não registassem o aluguer – não tenho a certeza, mas creio que o preço seria de 150 escudos (€ 0,75) –, porque iria tentar suspender o passeio. Desci a escadaria e a Costeira (rua de Coimbra) em passo de corrida e, quando cheguei ao Canal Central, a lancha estava a desatracar. Chamei o condutor, o senhor Manuel Rei, tentei demover as francesas, que eram belgas, de fazerem o passeio, porque não só, à chuva, não seria agradável, mas também porque a embarcação, não sendo cabinada, não reunia condições para, com mau tempo, transportar passageiros. Eram mãe e filha, na casa dos sessenta e dos trinta anos. Disseram que queriam muito ver “les bateaux typiques des ramasseurs d’algues”, que, no dia seguinte, teriam que estar no Porto e que estavam preparadas para a chuva. Passados tantos anos, ainda estou a ver os dois impermeáveis transparentes acinzentados. Note-se que, nessa altura, os moliceiros exerciam a actividade para que foram criados, mas, para os apreciar, era necessário ir aos locais onde se situavam as praias de moliço. Em Aveiro, não era possível vê-los, trabalhando na actual função de turisteiros. Esgotados, em vão, os argumentos dissuasores, resolvi acompanhá-las. Disse ao senhor Rei para irmos ao hangar buscar oleados para nos protegermos; respondeu-me que já estavam na proa. Tirei o casaco e a gravata que era obrigado a usar, porque fazia parte do Pessoal Maior, meti-os na proa e dei ordem de partida, começando a desbobinar o meu discurso “La lagune d’Aveiro”.
Estava tanto calor que eu nem conseguia ir sentado ao abrigo dos para-brisas, tendo feito todo o percurso de pé ou sentado nas costas do assento. Fomos até um pouco a norte da Torreira, ainda não havia a Ponte da Varela, tendo visto moliceiros e várias artes de pesca. Fizemos uma breve paragem na Torreira, para as senhoras tomarem qualquer coisa e irem à casa de banho. À partida para Aveiro, o tempo começou a escurecer e, quando vínhamos a chegar ao Monte Branco, vi o primeiro relâmpago, do lado da serra, por sudeste; comecei a contar lentamente e verifiquei, pelo método empírico que consiste em fazer corresponder 350 m a cada unidade, que a trovoada estava longe. Disse ao senhor Rei que seria melhor atracar na Casa Abrigo e esperar que passasse o mau tempo. Concordou comigo. O problema é que se levantou, de repente, uma ventania violentíssima do quadrante sul, o dia escureceu, a trovoada caiu em cima de nós – eram relâmpagos por todos os lados e sentia-se um forte cheiro a enxofre – e começou a chover abundantemente. Fui para o leme – já agora, uma confissão: timonei as cinco lanchas do Turismo, sem possuir nem cédula de marinheiro de tráfego local – e o senhor Rei foi tentar montar a lona da cobertura, mas debaixo daquele temporal não conseguiu. Felizmente, a maré estava a encher e o vento vinha com ela, não fazendo ondulação. Mas as rajadas pareciam chicotadas gigantes que faziam a água, galgando por cima da proa, bater nos para-brisas. Comecei a recear o pior, porque o velho motor “OLIMPIA” quase que não nos fazia avançar e, se falhasse, ficaríamos sem governo, podendo ir contra as pedras de protecção da estrada, perto da qual navegávamos. O senhor Rei, por incrível que pareça, pois desde criança tinha passado a vida em barcos, não sabia nadar. E só havia uma boia redonda. As belgas, que berravam e choravam baba e ranho, disseram-me que sabiam nadar. Eu não tive medo de morrer afogado, porque sabia nadar. Pelo sim e pelo não, tirei a protecção de oleado, descalcei-me e pus a carteira com os documentos na bolsa impermeável dos papéis da lancha, tendo-a guardado numa gaveta fechada, na proa. O meu relógio era à prova de água. Entretanto, ia falando com o senhor Rei e decidimos esperar um intervalo entre duas rajadas e virar a norte, para ir navegando a favor da água e do vento, com o motor ao “ralenti”; correríamos menos riscos, mesmo no que respeita a vir a acontecer uma possível avaria da máquina. Assim fizemos, nem tentámos atracar na Torreira, e fomos navegando, até passar o temporal, quase que chegando ao Carregal, no extremo da Ria. Quando se começou a juntar água da chuva nos paneiros do fundo da lancha, como não havia vertedouro, fui-a vazando com a caixa de madeira das ferramentas.
Voltámos para Aveiro, onde chegámos perto das 21H30 e, para nossa surpresa, tínhamos gente à nossa espera, na actual zona ajardinada, junto à Ponte da Dubadoura. As minhas colegas, tendo visto cair o temporal e sabendo que a lancha estava na Ria, tinham informado alguém da Secretaria da Câmara do que se estava a passar. Do Município, telefonaram para a Base Aérea de São Jacinto, para ver se, da torre de controle, nos avistavam. A resposta foi negativa, porque, mesmo recorrendo a binóculos, tal não seria possível, dado que nós tínhamos andado muito mais para norte da presumível zona de busca. Muito mais tarde, já no Canal Central, as pessoas que nos procuravam pediram informações aos tripulantes de um barco que tinha vindo de São Jacinto e eles também não tinham visto a lancha, talvez porque, não tendo luzes de navegação e temendo vir a ter problemas com a ondulação provocada por algum navio que, no canal da Gafanha, não nos enxergando, não abrandasse a velocidade ou até nos pudesse abalroar, quando chegámos às Duas Águas, metemos ao Espinheiro e ao Esteiro dos Frades, chegando a Aveiro pela Cale da Veia. Temendo o pior, a Câmara tinha providenciado para se formar um grupo de busca composto pelo senhor Carlos Mendes, com a lancha “Nortada”, e o senhor Gonzalez, com o barco cujo nome não me recordo. Lembro-me de que estava também presente o Presidente da Câmara, Dr. Alberto Souto (avô). As outras pessoas já não sei quem eram.
As belgas desfizeram-se em desculpas e disseram-me, entre muitas outras coisas, que nunca mais se esqueceriam daquele passeio. Nem eu!!! E posso escrevê-lo com toda esta convicção, porquanto, durante estes sessenta e tal anos, este episódio tem-me vindo com alguma frequência à ideia, por vezes, com tal riqueza de pormenores e intensidade que volto a viver, com a genica dos meus vinte e três anos, todas as peripécias que acabo de narrar.
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).
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