Paulo Ramalheira preside à MARIA – Movimento dos Amigos da Ria de Aveiro, que completou o seu primeiro aniversário enquanto associação. A atividade arrancou algum tempo antes, informalmente, e hoje é um dos “grupos de pressão” mais ativos na defesa da laguna, das suas atividades náuticas, económicas, sem esquecer a história e as vivências culturais e sociais.
Quer lembrar como surgiu o movimento ?
Começámos praticamente um ano antes, de forma espontânea, dada a situação gravosa do desassoreamento em praticamente toda a ria, com expressão nas marinas da náutica de recreio e da pesca, junto às margens de ancoradouros.
Um dia apanhámos umas marés vivas muito abaixo do zero hidrográfico. Publiquei umas fotos de indignação e escrevi que tínhamos de fazer algo para modificar isto. O post gerou centenas de respostas nas partilhas.
Houve alguém que sugeriu um jantar para discutir o assunto. Juntou-se uma dúzia de pessoas, que pensaram em arranjar forma de colocar o assunto na agenda do dia, fazer alguma pressão no bom sentido para as entidades estarem mais atentas, para esta situação que é muito complexa.
Fizemos contactos e em pouco tempo arranjámos um núcleo de pessoas unidas em torno da defesa do ecossistema Ria de Aveiro nas suas múltiplas utilizações: a náutica, a pesca, o turismo, cultura, etc. Começámos de forma informal, o Facebook tornou o movimento muito acessível, surgiu a carta de princípios, que foi muito bem acolhida. Em pouco tempo, tínhamos milhares de seguidores.
Com a pandemia surgem outras prioridades, não deixando a Ria de o ser, mas outras coisas sobrepõem-se. Ainda assim, há poucas semanas reunimos com a Secretária de Estado do Ambiente. Foi útil, mas não conseguimos passar a nossa mensagem no seu todo.
Atualmente, qual a vossa representatividade ?
Sócios somos cerca de uma centena, um grupo muito diversificado, heterógeneo, de todas as atividades relacionadas com Ria com uma preocupação comum relacionada com o conservacionismo, a herança que temos em mãos e, se possível, tentar deixá-la de forma mais generosa, melhor.
Poderíamos ter mais associados nesta altura. Mas isso não é a nossa preocupação, fazer essa captação de sócios. Temos os clubes náuticos, a principal associação de pesca, a APARA, muitos associados da Universidade de Aveiro, pessoas que têm algum tipo de relação com a Ria e gente que o faz apenas apenas por gosto da Ria. No Facebook são cerca de 4 mil seguidores. Os temas são muito seguidos, até fora de Portugal.
Queremos ser um grupo que promova a colaboração e reflexão sobre a Ria. Organizámos duas conferências e havia planos para mais, mas este tipo de atividades online perde algum ‘calor’ nos debates em busca de soluções para os múltiplos problemas da Ria. O assoreamento dos cais das coletividades náuticas é só um deles.
A náutica de recreio reclama mais atenção.
Quando falámos ainda agora com a Secretária de Estado do Ambiente sobre o desassoreamento, soubemos que o Governo iria fazer uma proposta para desassorear cais de pesca. Expliquei que não fazia muito sentido fazer a limpeza dos ancoradouros e marinas da pesca e deixar as sete marinas da náutica de recreio na situação como estão. Disse-nos que eram privados e tal. Há aqui um equívoco. As náuticas são associações sem objetivos comerciais. É muito difícil fazerem desassoreamento. Mesmo que alguma tivesse possibilidade, trata-se da reposição de fundos que não se fez em duas décadas. Hoje está em situação lastimável, que prejudica imenso as náuticas. A náutica de recreio é um elemento gerador de riqueza, há a montante e jusante pessoas que trabalham e vivem daquela atividade, a reparação das embarcações por exemplo.
A empreitada de desassoreamento em curso não satisfaz.
É um erro esquecer-se as marinas de náutica de recreio, estão na mesma situação. A Ria tem 11 hectares, estamos a falar da limpeza de quatro ou cinco hectares. Os clubes pagam taxas, impostos, para estar em domínio público marítimo. Além do mais, não têm capacidade nem competência para intervir na Ria. Mas acredito que todos os clubes poderiam ajudar, comparticipar nas dragagens que necessitam. O preconceito dos privados não deviam existir. Os clubes ajudam a promover a região, colaboram com as autarquias em tudo, ajudam na divulgação do turismo.
Temos na associação embaixadores que demonstram a importância da náutica: o Nuno Barreto, campeão olímpico de vela, que começou aqui; o Renato Conde, velejador de alta competição; e ainda o antigo reitor da Universidade de Aveiro, Manuel Assunção, que não sendo de cá escolheu Ílhavo para viver. Todos ajudam.
Pedimos às Câmaras que nos ajudem a aproveitar o desassoreamento para resolver um pequeno problema no meio de tudo isto, como é o caso dos clubes náuticos.
Condições únicas para praticar vela todo o ano, a necessidade de gestão integrada de proximidade e a falta de um centro interpretativo sobre a Ria
A vela poderia ter maior desenvolvimento com essas condições, por exemplo na prática desportiva ?
Na Ria temos condições únicas na Europa para praticar vela todo o ano. De tempo, de água. Fazemos desportos náuticos nestas águas anteriores, junto ao mar, todo o ano. Quando no Norte da Europa é impossível, devido ao inverno. Poderíamos ter aqui um centro de alta competição de vela, para estágios, como faz o remo em Montemor.
Defendem que a Ria de Aveiro deve ser cuidada de forma mais próxima.
A Ria de Aveiro precisa de um orgão de gestão integrada. Sem ser à distância, em Lisboa. Tem de ser gente de Aveiro, com assessoria técnica e científica daqui, dos autarcas de cá, dos pescadores, das pessoas que compreendem os fenómenos associados à Ria.
No plano histórico e cultural há muito ainda por fazer em torno da Ria de Aveiro, do seu barco moliceiro e não só.
Parece impossível que a Ria não tenha um centro de interpretação, fazer o estudo do que aqui se passou, da sua história. Apareceram vestígios arqueológicos, isso devia estar aqui e não no Museu da Marinha. Tem de ser estudado aqui. Dar a conhecer às pessoas daqui e quem por aqui passa. A descentralização é também isso.
Achamos que seria de enorme utilidade para não se perderem memórias e conhecimento, como é o caso da carpintaria naval. Há um património sócio cultural que merece mais atenção. Espaços para apreciar as especialidades gastronómicas. Soubemos que haverá um privado interessado em colaborar connosco, mas isto tem de partir da região.
Que atividades tem a associação em vista ?
A Ria liga Ovar a Mira. Queremos retomar as conferências, com especialistas, debater os assuntos que interessam à região, estimular a discussão esperando que nasça luz. Falámos com quase todos os autarcas. Entendem as nossas preocupações, apoiam-nos nesse aspeto. Percebo que as autarquias não as assumam como prioridades. Mas cá estaremos para as lembrar, queremos é preservar a Ria de Aveiro.
Do Porto de Aveiro, o que esperam ?
A Junta Autónoma do Porto de Aveiro tinha ao seu cargo várias frentes, na Ria e no território. Com o Porto de Aveiro isso passou para a Agência Portuguesa do Ambiente, que é uma coisa gigantesca.
O Porto de Aveiro poderia fazer algo mais, tem resultados para isso. Está todo metido na Ria, influência a Ria. Um dos problemas é a invasão dos campos a Norte pelas águas salgadas devido às obras na barra.
O Porto de Aveiro é um extraordinário pólo de desenvolvimento regional, que chega a Espanha. Mas sendo o principal beneficiário da Ria, não é pedir muito que possa ajudar o ecossistema. A presidente é da área do ambiente, entende muito bem isso. O problema é que existe uma tutela e uma orientação para os portos. O ministro das Infraestruturas com quem conversámos , entende muito bem isto, que o porto poderia ter aqui uma intervenção. Na manutenção de muros de defesa dos campos e até dos fundos de zonas da Ria que são afectadas pela amplitude das marés. Sobre este tipo de correções, temos a expetativa que poderão ser assumidas em parte pelo porto.
A antiga lota e a marina da Barra
A antiga lota de Aveiro poderia servir para marina de cidade ?
Precisa de ser reabilitada, existem ali algumas atividades improvisadas. Qualquer coisa que se faça ali terá também de ter componente imobiliária. A passagem dos terrenos para a Câmara poderá não ser para já, há ainda ‘pedra a partir’. Não se deverá resolver proximamente. Faz sentido uma marina, mas nunca será uma grande marina.
A viabilidade de uma marina na região era onde foi projetada de forma megalómana, em Ílhavo, e que não se fez. Há uma nova sociedade que comprou a empresa que tem a concessão do Porto de Aveiro. Está em desenvolvimento um novo projeto, muito mais reduzido, mais enquadrado naquela zona, salvaguardando o património aquático que o outro não fazia.
Uma marina de mar terá de ser o mais próximo da barra. S. Jacinto poderia ser, mais tem limitações de espaço.
A marina na região é interessante e necessário. A barra raramente fecha, ao contrário de outras. Tem águas internas excelentes.
Temos mão de obra qualificada, de carpintaria naval, construtores de embarcações, mecânicos, outros técnicos. Ainda recentemente foi reativado um estaleiro. E não é por acaso que veio para aqui. A atividade da pesca criou ao longo dos anos essas condições.
Tivemos informação que em 2019 houve 800 embarcações que contactaram o Porto de Aveiro para saberemos onde podiam atracar em Aveiro. São mais de 12 mil embarcações de recreio ao largo de Aveiro.
Estes dias de pandemia também não são fáceis para quem gosta da Ria e não pode usufruir de atividades náuticas...
O confinamento tem limitações grandes para quem gosta da náutica de recreio ou a pesca lúdica. Vamos ter esperança que no verão, com alguns cuidados, viremos a desfrutar deste belíssimo espaço que nos calhou em sorte ter aqui à disposição. Temos é de o preservar para que não fique estragado para as gerações que estão por aí vir.