Paradoxos da governação em Aveiro

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Fonte Nova, Aveiro.

Observa-se o mesmo município, que estava aparentemente sedento por mais estacionamento no coração da cidade a qualquer custo, “esquecer” o maior lote de estacionamento planeado na cidade.

David Iguaz *

Resulta difícil ter de falar de assuntos de estacionamento e políticas urbanísticas nestes tempos em que a única prioridade dos nossos governantes deveria ser o futuro imediato das pessoas e bens, assim como o relançamento da economia para que os negócios continuem vivos e consigamos sair desta hecatombe civilizacional sem precedentes sem mazelas irreversíveis.

Infelizmente em Aveiro o principal objectivo camarário parece continuar a ser, incrivelmente, o prosseguimento das obras públicas a todo o custo.

Um dos principais desafios das cidades do presente passa indiscutivelmente pela mudança de paradigma em termos de mobilidade urbana. Não é por acaso que em Aveiro a questão do estacionamento se encontra na ordem do dia, porém neste caso não pela aplicação das melhores soluções.

As políticas municipais do estacionamento têm de ir ao encontro das melhores práticas internacionais, têm de ser racionais e compreensíveis pelos cidadãos aveirenses, sob pena de se desrespeitar a inteligência dos seus principais destinatários, e de até se poder gerar suspeitas de que os critérios que suportam as decisões, ou não existem, ou são de natureza questionável.

Os aveirenses, recentemente, têm vindo a ser vítimas de decisões municipais contraditórias em matéria de estacionamento automóvel. Por conseguinte nunca será demais que se reforce as reflexões cívicas sobre estas matérias, com destaque para uma das situações mais sobejamente conhecidas mas sem resolução à vista.

Se por um lado se observa um município obstinado, indo contra tudo e contra todos na questão do parque subterrâneo automóvel a construir em pleno jardim do Rossio, integralmente em zona que já esteve debaixo de água por diversas vezes – a última muito recentemente durante a tempestade Elsa, que provocou inundações na parte do Rossio para a qual é contemplada a futura entrada do pretendido parque de estacionamento, violando-se os elementares princípios da “precaução” e da “responsabilidade” bem como a própria lei da água (1), assim como regulamentações e recomendações oficiais subsequentes daí advindas (2) -,  por outro lado, observa-se o mesmo município, que estava aparentemente sedento por mais estacionamento no coração da cidade a qualquer custo, “esquecer” o maior lote de estacionamento planeado na cidade.

Um lote de estacionamento com uma área superior a dois campos de futebol (22.325m²) para estacionamento em pleno centro da cidade!

Mais do triplo da área prevista no anteprojeto do parque subterrâneo do Rossio que contempla a criação de apenas 163 lugares líquidos eliminando os lugares à superfície na sua totalidade (3).

Trata-se do lote n.º7, no cais da Fonte Nova ao longo das instalações da actual Câmara Municipal exclusivamente destinado a estacionamento, no populoso Plano de Pormenor do Centro (PPC), com capacidade populacional prevista superior a 6.500 habitantes.

Claro que nada disto faz sentido nesta nova realidade com a que nos confrontamos, uma vez que as prioridades actuais deveriam revestir um cariz preponderantemente humano e não um de betão.

No entanto o plano urbanístico em vigor ainda prevê para este local uma “zona verde” pública, zona esta que está a ser atropelada actualmente pela implantação em betão do parque privativo da Câmara.

Não se conhece que a Assembleia Municipal de Aveiro tenha aprovado alguma alteração aos limites do lote 7 do plano em vigor, nem que adicionalmente tenha sido emitido pela Agência Portuguesa do Ambiente (APA) a autorização para realização de obras dentro do domínio público hídrico marítimo (DPH), conforme é assinalado na planta de condicionantes do PPC.

Na confirmação da ausência efetiva dos procedimentos legais exigidos, desconhecidos por recorrente défice de transparência na gestão municipal, importava que as entidades tutelares não assobiassem mais uma vez para o lado e apurassem as situações com a exigência que se impõe, sob pena do ónus da violação de regras urbanísticas também poder cair sobre eles. Se estamos perante um evidente caso de violação de regras urbanísticas pelos diversos funcionários responsáveis ou pelos titulares de cargos políticos, as entidades em causa são obrigadas a atuar em conformidade!

A Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT) integra a especial função de garantir o funcionamento de uma sociedade justa, equilibrada e eficiente, promovendo o cumprimento da lei com relevância para as matérias do âmbito do Ambiente e do Ordenamento Território.

A inépcia das entidades tutelares e inspetivas na prossecução das suas competências, promove o sentimento governativo de impunidade, abrindo mais caminho para decisões antagónicas em termos técnico-científicos, como já se vem verificando em matérias de diversa ordem em Aveiro.

Veja-se igualmente o licenciamento da ampliação do Centro Comercial Glicínias em mais 46% da área comercial, quando as boas práticas internacionais as aconselham para bem longe, para não se atentar contra a subsistência do definhante comércio tradicional nas ruas das cidades e, no nosso caso também na Av. Dr. Lourenço Peixinho que o município pretende requalificar repetidamente, como se não houvesse outras zonas no município indiscutivelmente mais prioritárias. Aliás convém salientar que o novo projecto da Avenida contempla a eliminação de 30% da área de estacionamento limitando arbitrariamente o aceso ao mesmo das populações que ali residem.

Não basta gastar dinheiro, há que saber gastar bem o dinheiro, especialmente quando se trata de um bem público! Não deve bastar aos cidadãos a justificação de que o gasto público é por si só motor de crescimento económico ou que os dinheiros nem são nossos mas sim dos filantropos fundos europeus. É necessário que o investimento público seja extremamente criterioso! Urge tomar consciência que os fundos europeus um dia poderão acabar e aí se chorarão as decisões despesistas de antes, que ao invés de cultivarem a autossuficiência e raízes para uma riqueza crescente, duradoura e inter-geracional, apenas se ficaram pela criação de riqueza momentânea e pela geração de novas dependências incessantes de recursos públicos.

Impõe-se assim aos aveirenses que sejam mais exigentes com as instituições tutelares, já que os responsáveis que estão à frente das decisões municipais relaxam no rigor com que tratam as matérias que são pertença de todos ou simplesmente relegam o respeito à lei para algo meramente decorativo.

1-(Lei n.º 58/2005; 7ª versão – a mais recente: Lei n.º 44/2017, de 19/06)
2-Carta de zonas inundáveis – Portugal continental – Limite da área de inundação – Período de Retorno de 20 anos – INSPIRE – Agência Portuguesa do Ambiente (APA), I.P
3-Memória descritiva do Projeto do Rossio do anteprojeto (Dezembro, 2018)

David Iguaz.

* Arqueólogo e activista.

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