“Os relatórios de Rondon indicam mesmo que na época dos primeiros contactos os indígenas (amazónicos) mostravam-se irritados com a presença dos fumadores e lhes arrancavam os charutos e cigarros” – Claude Levy Srauss in ‘Tristes trópicos’.
Por Acácio Gouveia *
É reconfortante, para variar, encontrar motivo para elogiar um político. Mormente, quando o político em causa não me parece particularmente auspicioso. Contudo, a prestação do Ministro da Saúde na conferência de imprensa em que defendeu a proposta legislativa antitabagista, só pode ser avaliada como positiva. Libertou-se (até que enfim!) da habitual tacanhez dos que têm medo de serem acusados de “fundamentalismo antitabágico”. Gostei particularmente da resposta à farisaica questão sobre os impostos pagos pelos fumadores e em risco de minguarem por via da legislação em causa: “Esse é o dinheiro que não queremos!”. Que é como quem diz: receita obtida à custa da morte prematura e do imenso sofrimento dos cidadãos fumadores é dinheiro sujo que governantes responsáveis, e guiados pelo mínimo sentido ético, se devem esforçar para que acabe.
Vale a pena analisar melhor o canhestro argumento fiscal, papagueado à saciedade pelos trolles da Big Tabacco. Não percamos tempo a desmascarar a mentira: é claríssimo que o tabaco não traz lucro ao erário público, por via de impostos, mas sim prejuízo considerável causados pelos custos do tratamento de doenças que provoca e pelas perdas de horas de trabalho. Contudo, apesar da descarada falsidade do argumento, ele é reiterado com a veemência dum Trump a alegar fraude nas eleições que o destituíram! Já agora, vale a pena escalpelizar este argumento económico (ou será economicista?) porque exprime uma inversão de valores, tão bizarra quanto sinistra. Por via de regra, os governantes (estes ou outros) são acusados de colocarem à frente dum valor maior – a saúde – o valor do dinheiro e não providenciarem financeiramente o SNS. Já quando se trata dos impostos sobre tabaco, a prioridade, para quem insiste nas suas vantagens, passa a ser a fazenda e não a saúde dos fumadores. Por exemplo: as mortes por mesotelioma são uma falha do poder que não providencia a remoção do amianto; já enveredar por políticas antitabágicas com a vista a diminuir a incidência carcinomas brônquicos, DPOC, doença coronária, etc., etc., passa a ser uma irresponsabilidade económica, olvidando as mortes e imenso sofrimento dos doentes e familiares! (Serão por uma boa causa?!).
Se andou bem o ministro da saúde, o mesmo não se pode dizer da comunicação social. É óbvio que cabe aos jornalistas fazer o papel de advogado do diabo, mas falando-se de saúde, é curioso que todas as perguntas colocadas não o mencionem e se centrassem apenas no “mais do mesmo”. Isto é, nas objeções do costume (liberdades, direitos e as tais supostas gaucharias geradas pela fiscalidade, os empregos, etc.). Por exemplo, ninguém tentou entalar o ministro sobre os incrementos no preço do tabaco, consequência dos aumentos de impostos, ficarem sempre abaixo dos 10%, sabendo-se que só acima desse limiar se conseguem reduções significativas de consumo? Afinal, pretendem ou não combater a dependência tabágica?
Da amostra a que tive acesso sobre a postura da comunicação social generalista, fica a sensação que este tema não é abordado com isenção habitual do jornalismo português. O guião é, mais coisa, menos coisa, o seguinte: antes de mais desvalorizar/eclipsar o foco destas políticas (proteger a saúde); depois é avançar com a fanfarra das liberdades e direitos, vitimizando o cidadão fumador; continua-se com o não argumento económico; deixa-se (cautelosamente) na sombra os interesses da Big Tabacco. A falácia dos direitos e liberdades é duma fragilidade que evoca o raciocínio lavroviano para justificar a invasão da Ucrânia, ou seja, o objetivo é libertar o povo ucraniano! Diz a literatura que cerca de dois em cada três fumadores desejaria não fumar … não fosse estarem dependentes, isto é, estar a sua liberdade limitada. Falar de escolha, ou direito ao consumo destas pessoas dependentes é um absurdo a roçar o cinismo. É o mesmo que evocar o direito que assiste às escravas sexuais usarem o corpo para a prostituição. Permito-me colocar só mais um engulho no caminho da argumentação pretensamente libertária. Quais os direitos e liberdades proporcionados aos embriões e fetos em gestação no útero das grávidas fumadoras? É insofismável que são afetados pelo consumo das grávidas. Quem se atreve a dizer que o tabagismo não configura, nestes casos, uma ditadura cruel?
Curiosamente, o tempo de antena proporcionado aos críticos das medidas anunciadas foi incomparavelmente superior aos que a defendem. Por exemplo … onde param os profissionais de saúde? Que diz de tudo isto a OM? Não ouvi ainda sinal da OM.
* Especialista em Medicina Geral e Familiar. Artigo publicado originalmente no site Healthnews.pt.
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