Como o negacionismo puro e duro se tornou insustentável, a estratégia de contrariar as políticas antitabaco adaptou-se.
“A sabedoria é a cousa principal: adquire, pois, a sabedoria; com tudo o que possuis adquire o conhecimento” – Provérbios 4.7.
Por Acácio Gouveia *
A ilegitimidade dos poderes abusivos é sempre incompatível com alguma das vertentes do conhecimento. Por isso é que as religiões, os regimes autoritários e os grupos económicos, cedo ou tarde, dum modo mais ou menos abrangente, entram em conflito com uma ou mais formas de ciência recorrendo a variados modos de repressão e criando narrativas alternativas (fake sciences) ao conhecimento.
O fanatismo religioso que perseguiu Galileu é o mesmo dos evangélicos e judeus ortodoxos adeptos dos movimentos antivacinas dos dias de hoje; o fundamentalismo hindu declarou guerra ao darwinismo e rescreve a história da Índia; Stalin proscreveu Mendel e Mao baniu a teoria da relatividade. Mas não se julgue que os regimes laicos e democráticos estão ao abrigo de movimentos anticiência. Um exemplo curioso de grosseira tentativa de rescrita da ciência é-nos dado pela aprovação na Camara Baixa do congresso estadual do estado do Indiana (EUA), há século e meio, da bill 246. Ao abrigo desta lei os legisladores decidiram que PI passaria a ser 3,232, em vez daquele enervante número irracional que não tem fim! Quer dizer os congressistas abraçaram a ilusão que tinham poder de alterar as leis da natureza.
Poderosos grupos económicos, quando o conhecimento não lhes é favorável não hesitam em combate-lo, à semelhança dos ditadores ou dos fundamentalistas religiosos. As petrolíferas e as agropecuárias intensivas, por exemplo, só recentemente desistiram de rejeitar a existência de alterações climáticas, mas continuam a negar a origem antropogénica e porfiam em impedir mudanças políticas conducentes à mitigação da catástrofe que se avizinha, com notável sucesso. Em idêntico negacionismo insistiu, durante décadas, a Big Tabacco, recorrendo até ao suborno de políticos e mesmo de licenciados em medicina(!). Como o negacionismo puro e duro se tornou insustentável, a estratégia de contrariar as políticas antitabaco adaptou-se.
Quem teve ocasião de assistir, no passado dia 31 de maio, ao pseudodebate encenado no jornal da noite da SIC, pode testemunhar a habilidade em transmutar o dia do não fumador em publicidade pró-tabagista. A deputada Isabel Moreira, figura de proa do lóbi pró-tabaco, contracenou com um “comentador” impreparado, seguindo um guião evocativo dum combate de luta livre mexicano, isto é, mais ou menos combinado. Porque não trazer ao estúdio um pneumologista, um oncologista ou cardiologista? É evidente: para se evitar um contraditório arrasador, que desmontaria a cáfila de falácias e da consagração de falsa ciência que a deputada desfilou perante as câmaras impunemente. A legisladora, aproveitando a ausência de representante do conhecimento científico, falsificou a ciência tal como os congéneres estadunidenses do século XIX.
Mas, contrariamente ao ridículo episódio do congresso do Indiana, que morreu na praia graças à intervenção assertiva dos matemáticos, entre nós a classe médica manteve-se respeitosamente silenciosa perante uma clara ofensiva da indústria tabaqueira. Permitiu, obedientemente, ser afastada da discussão pública em assunto de magno impacto na saúde. Desgraçadamente, a nossa Ordem, que não se coíbe de intervir publicamente (e ainda bem que o faz!) quando entende ser relevante em matérias que afetam a saúde, neste particular remeteu-se a um mutismo incompreensível.
* Especialista em Medicina Geral e Familiar. Artigo publicado originalmente no site Healthnews.pt.
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