Eu e os meus amigos temos apenas quinze anos, mas conhecemo-nos desde o princípio do mundo. Partilhamos os mesmos interesses, sonhos e medos. Escutamos devotamente as canções do top 20; discutimos filosofia entre goles de cerveja; sonhamos com viagens longínquas, para o Tibete ou a ilha de Sumatra; riscamos os dias que faltam para as férias do verão e os mergulhos azuis no oceano; ocultos atrás do ginásio da escola, ora damos as primeiras passas em cigarros baratos, ora praticamos a arte do beijo.
Por João de Mancelos *
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Somos um grupo de quatro adolescentes: eu, o sonhador de serviço; o gémeo e a sua irmã, tão parecidos que comunicam por telepatia; e, por fim, a namorada do gémeo, uma rapariga de olhos azul-cobalto a quem chamamos “Espírito”. A alcunha advém de ela ser loira, possuir uma tez seráfica e se vestir sempre de branco da cabeça aos pés. Um dia, no intervalo de uma aula, perguntei-lhe o porquê dessa bizarra escolha; contudo, a rapariga limitou-se a sorrir, tão enigmática quanto a Gioconda.
A Espírito leu mais livros do que todos nós em conjunto, mas — note-se! — apenas de poesia. De facto, recusa-se a tocar em prosa e nunca abriu os romances obrigatórios para a escola. Isto, segundo a rapariga, para não contaminar a poesia com a arte menor da prosa. No dia do aniversário, investiu o dinheiro oferecido pelos pais e mandou tatuar, no pulso, numa caligrafia floreada, este lema de vida de Kate Forsyth: “Que o meu coração seja bravo; a minha mente, forte; e o meu espírito, livre”.
Naquele fim de tarde sufocante de agosto, encontramo-nos deitados no jardim da vivenda dos meus pais. Palramos acerca de canções românticas. Muitas parecem superficiais, de mascar e deitar fora, como pastilhas elásticas. Apesar de tudo, contêm verdades cristalizadas, fruto das experiências de vida e dos compositores.
O gémeo gosta particularmente do clássico “What You Won’t Do For Love”, uma canção de Bobby Caldwell, que costuma trautear: “You’ve tried everything but you won’t give up. / In my world only you make me do / For love what I would not do.”
* Excerto do conto “O que farias por mim”, do livro “Uma canção de amor”. Editora Colibri, 2023.
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“Uma canção de amor” é um livro diferente sobre personagens diferentes. As treze narrativas que compõem a obra são protagonizadas por heroínas portadoras de deficiências físicas ou de doenças de foro psíquico. Nenhuma delas procura a compaixão dos leitores, nem se sente diminuída por qualquer caraterística física ou mental. Por exemplo, a jovem que usa uma perna prostética desenha nela bonecos de manga, encarando-a como uma tela onde dá largas ao seu talento artístico. Esta e outras personagens vivem histórias de amor felizes e desafiam preconceitos. É, portanto, uma obra que visa promover o respeito e a inclusão, através de enredos originais.
O autor publicou 29 livros nas áreas do ensaio, poesia e ficção. No ensaio, destaca-se O marulhar de versos antigos: A intertextualidade em Eugénio de Andrade (2009) e Manual de escrita criativa (2012); na poesia, Luzes distantes, vozes perdidas (2019) e Coração de aluguer (2023); no conto, Nunca digas adeus ao verão (2021) e A rapariga que adorava finais felizes (2021), este último parte do Plano Nacional de Leitura. Foi distinguido em diversos concursos literários. Dois contos seus foram adaptados a teatro e um, a cinema, no Brasil. Para além de escritor, João de Mancelos é crítico literário, investigador no Centro de Línguas, Literaturas e Culturas da Universidade de Aveiro e professor na Faculdade de Artes e Letras da Universidade da Beira Interior. Site pessoal do autor em https://joaodemancelos.wordpress.com.
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