O problema da Habitação

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Bairro de Santiago, Aveiro.

O Governo, acossado por acusações de ausência das chamadas “reformas estruturais”, colocou em discussão pública um conjunto de medidas destinadas a combater a referida falta de oferta de habitação para as famílias médias.

Por Henrique Rodrigues *

1 – “Não há outro lugar para habitar
além dessa, talvez nem essa, época do ano
e uma casa é a coisa mais séria da vida.”
(Ruy Belo, “O Problema da Habitação – Alguns aspectos)

A nossa casa é uma coisa séria, com efeito: o nosso lugar de acolhimento e de resguardo.
Ou o nosso “lugar de recuo”, para utilizar uma metáfora que no nosso País possui uma conotação mais significativa.
Lembram-se de Guerra Junqueiro, hoje tão esquecido, em Os Simples”, que estudámos na escola primária?

“REGRESSO AO LAR
Ai, há quantos anos que eu parti chorando
deste meu saudoso, carinhoso lar!…
Foi há vinte?… Há trinta?… Nem eu sei já quando!…
Minha velha ama, que me estás fitando,
canta-me cantigas para me eu lembrar!…”

2 – O principal debate da agenda político-mediática dos tempos mais recentes tem girado à volta da escassez de oferta do mercado de habitação para as famílias “normais” – entendendo esta normalidade como abrangendo famílias cujos rendimentos provêm de trabalho por conta de outrem, remunerado de acordo com o padrão português: pessoas com formação superior a ganhar cerca de mil euros por mês; e titulares de menores habilitações com remunerações à roda do salário mínimo.

As casas onde habitamos, ou são próprias, ou arrendadas.

As que são próprias, são normalmente adquiridas em resultado de empréstimos concedidos pela banca, com prazos de 30 ou 40 anos para pagamento de capital e juros.

Se considerarmos a idade média de constituição de família nos tempos que correm – qualquer coisa como 25/30 anos -, e se partirmos do princípio que é quando constituem família que as pessoas adquirem casa, teremos de concluir que quase todo o tempo de vida profissionalmente activa dos jovens casais ficará vinculado ao pagamento das prestações de empréstimo contraído no início da vida em comum.

Pouco sobra!

O pagamento integral do empréstimo coincidirá com a idade da reforma.

(Tinha razão antecipada Ruy Belo, em 1962, quando publicou “O Problema da Habitação – Alguns Aspectos”: “… uma casa é a coisa mais séria da vida.”)

Mas essa modalidade está hoje em crise, para novos contratos de crédito, pelo aumento galopante do preço das casas, principalmente nos principais centros urbanos – que são também a principal oferta de emprego.

O preço das casas cresce a um ritmo superior ao do crescimento dos salários.

E está igualmente em crise relativamente aos contratos de crédito em curso: normalmente de taxa variável, hoje em crescimento contínuo, com o consequente efeito de um enorme aumento das prestações mensais a pagar ao banco credor, aumento também muito superior ao do ritmo de crescimento dos salários.

Tal alteração dos pressupostos em que contraíram o empréstimo vai certamente levar a muito incumprimento e às correspondentes penhoras das casas – e ao desalojamento dos actuais ocupantes delas.

E acontecerá a esses como a muitas outras jovens famílias, que ficaram a viver em casa dos pais, por nunca terem tido rendimentos para casa própria ou arrendada.

Já quanto às arrendadas, o mercado também não funciona.

São poucas as casas colocadas no mercado de arrendamento; e as que o são têm rendas incompatíveis com os rendimentos médios das famílias.

Só reformados nórdicos e nómadas digitais podem pagá-las – passe o excesso …

3 – O Governo, acossado por acusações de ausência das chamadas “reformas estruturais”, colocou em discussão pública um conjunto de medidas destinadas a combater a referida falta de oferta de habitação para as famílias médias.

No meu tempo de estudante, quando se queria desvalorizar a prestação num exame, dizia-se que no trabalho do aluno havia propostas boas, e propostas originais; mas que as originais não eram boas e as boas não eram originais.

Não faço um diagnóstico tão severo sobre o pacote de habitação apresentado pelo Governo.

Mas há uma medida que tem predominantemente ocupado o espaço do debate público, que é original, mas não é boa: trata-se do chamado arrendamento coercivo, que consiste em o Estado impor aos proprietários de prédios devolutos o arrendamento forçado deles ao mesmo Estado, sendo ainda o Estado a fixar a renda que vai pagar, a fazer as obras que entender para o imóvel ficar habitável, se o não estiver, e a deduzir o seu montante no valor da renda a pagar ao dono.

Como diz o povo, o Estado “faz e baptiza.”

Trata-se do mundo ideal, para qualquer autocrata: ter poder para obrigar outrem a contratar consigo e poder definir unilateralmente as cláusulas desse contrato.

Tem sido aduzida em benefício da admissibilidade da medida a comparação com o instituto da expropriação por utilidade pública – no sentido de que o direito de propriedade não constitui, no nosso País, um direito absoluto.

E não constitui, de facto.

Mas a diferença é que é a Constituição que admite a figura da expropriação, por motivo de utilidade pública, impondo, porém, o pagamento da justa indemnização como contrapartida – sendo certo que, em última instância, é aos tribunais que compete fixar o valor dessa indemnização.

Também tem sido utilizado o argumento de que a Constituição, consagrando o direto à propriedade privada, próprio das democracias liberais, também estatui sobre o direito à habitação – pelo que haveria colisão de direitos.

Este argumento não tem, a meu ver, pés para andar.

Em primeiro lugar, se se tratasse de colisão de direitos, importaria explicar por que razão teria de ser o direito à propriedade privada a “encolher-se”, para expandir o direito à habitação.

Em segundo lugar, quem tem de garantir os direitos constitucionais é o Estado; não são os particulares, designadamente os proprietários de imóveis.

Quem tem de pagar a despesa pública, incluindo a despesa do Estado para assegurar o exercício dos direitos, são os cidadãos, através da tributação fiscal – que deve ser progressiva e proporcional.

Os proprietários já pagam, com os seus impostos, os encargos de Estado com a politica da habitação – seja com o IMI, o IVA ou o IRS.

Não têm de pagar duas vezes – enquanto os demais cidadãos só pagam uma vez.

“Quem não tem dinheiro, não tem vícios.”

4 – A propósito desta propensão do Estado para entrar na nossa vida mais do que o bom senso permite, e da máquina burocrática que seria necessário pôr em marcha para assegurar a gestão do imenso parque habitacional de que pretende apoderar-se, a semana em que escrevo a crónica veio confirmar o que aqui tenho afirmado sobre essa causa de decadência nacional que é o centralismo de que padece o Estado.

Já aqui tenho escrito várias vezes sobre a habilidade com que, quer o PS, quer o PSD, à vez, quando se substituem no Governo da Pátria, se apressam a desmentir as promessas eleitorais respectivas.

Então, não era desta, com António Costa, que a exigência constitucional da regionalização seria cumprida?

Já não é!

Fica para a próxima: a regionalização e a minha opinião sobre mais esta pirueta do PS.

* Artigo publicado originalmente no site Solidariedade.pt.

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