Portugal tem tido, ao longo dos dois últimos séculos, dentro de todas as suas dinâmicas e vicissitudes um complexo estrutural: o receio de reformas profundas, abrangentes, que ultrapassem segmentos e contextos particulares, demasiados específicos ou pontuais. Reformas que consigam alterar o paradigma corrente, adaptando e ajustando a realidade do Poder Local às dinâmicas que a evolução civilizacional nos vai criando e desafiando.
Por Paulo Pinto dos Santos *
Permitam-me que referencie o lema deste XXVI Congresso – “Poder Local, o mais próximo das pessoas” para refletir sobre as propostas que integram o Documento Temático “Autonomia e Descentralização”.
Por uma questão estrutural e de tempo, pretendo partilhar convosco a análise ao documento focado em dois aspetos que considero relevantes.
É certo que as temáticas da Descentralização e da Regionalização, quer pela sua importância, quer pelo impacto que têm nas dinâmicas do Poder Local, quer, ainda, pelos desenvolvimentos já ocorridos e/ou os que estão em curso, seriam, por si só, merecedoras de reflexão. No entanto, reconheça-se, que as abordagens e avaliações apresentadas no documento temático são, reconhecidamente, muito bem apresentadas e fundamentadas. Seria redutor ou, até mesmo, desapropriado cair na repetição de factos e argumentos. Digamos, ainda, uma intervenção inócua e sem sentido prático. Estarão, claramente, mais avalizados os congressistas autarcas dos executivos municipais para acrescentar mais-valias à reflexão nestas duas vertentes. Há, no entanto, dois aspetos que merecem particular atenção: o Observatório do Poder Local e o Estatuto dos Eleitos Locais.
No enquadramento do documento, há uma afirmação que gostaria de destacar, tomando a liberdade de me apropriar da mesma: “Sem autonomia administrativa, financeira e (sublinho eu) de auto-organização e sem atribuições amplas, o Poder Local não é capaz de cumprir o seu papel primordial de salvaguarda dos interesses das populações”.
Podemos subscrever toda a análise apresentada que reflete o processo da descentralização e o propósito e objetivos que sustentam a pertinência e urgência da Regionalização. É perfeitamente legítima a pretensão referenciada quanto à inaceitável e inqualificável retenção remuneratória de 5% e a sua reversão. Até poderemos deixar de lado algum efeito retroativo. A reversão, por si só, já é mais que justa e urgente.
É de enaltecer a clareza, frontalidade e transparência com que o relator, Dr. Álvaro Araújo, tratou e abordou os Riscos de Gestão. Mas falta-nos mais… falta sempre mais. Falta, principalmente, olharmos para a base, para o alicerce do Poder Local: os eleitos locais e o seu estatuto, ao que podemos ainda acrescentar a própria Lei Eleitoral Autárquica
Portugal tem tido, ao longo dos dois últimos séculos, dentro de todas as suas dinâmicas e vicissitudes um complexo estrutural: o receio de reformas profundas, abrangentes, que ultrapassem segmentos e contextos particulares, demasiados específicos ou pontuais. Reformas que consigam alterar o paradigma corrente, adaptando e ajustando a realidade do Poder Local às dinâmicas que a evolução civilizacional nos vai criando e desafiando.
Aliás, sem pretender cometer nenhum atropelo histórico, é curioso que a Nação, fruto do próprio contexto dos descobrimentos, foi mais audaz e mais reformista, na plenitude do conceito, nos tempos da monarquia do que neste período republicano. E não sou, de todo, monárquico.
É pois, importante, que esta vertente apresentada sobre o Estatuto do Eleito Local fosse mais abrangente e profunda.
Aproveitando esta excelente proposta do Observatório do Poder Local, que não deve, de todo, ficar refém da Descentralização e da Regionalização, era importante olhar para o Poder Local na sua base, naquilo que é o Regime Jurídico das Autarquias, naquilo que é a eleição, organização, missão e função dos órgãos autárquicos, nomeadamente numa reflexão sobre a estruturação dos órgãos Executivos e a redefinição e, por que não dizê-lo, da valorização da essência do órgão Deliberativo.
Não cabe agora, aqui, estarmos a tecer conjunturas sobre conceitos e propostas. Se os Executivos devem ser monocolores, se emanam das Assembleias, se, para além da eleição direta do Presidente da Câmara, o restante Executivo deva ser ou não eleito ou apenas nomeado. Se as Assembleias Municipais devem ir para além de um mero espaço administrativo de validação, ou não, das propostas que a lei obriga o Executivo a apresentar, se podem ou devem ter outra missão e função. Uma coisa é certa, deixemos de lado esse mito do órgão fiscalizador… quanto muito, órgão avaliador. Porque quem fiscaliza é o Tribunal de Contas, os Tribunais Fiscais e Administrativos e a tutela Fiscal e Tributária.
Julgo que é evidente a importância que esta reorganização dos papéis e funções, das competências e do regime jurídico do Poder Local se faça para que os processos de Descentralização, de Regionalização e, acima de tudo, da verdadeira concretização da democracia e da política de proximidade seja mais concreta, eficaz e garante da democracia local. E este documento temático é um excelente princípio de reflexão e concretização, nomeadamente no que propõe para o Observatório do Poder Local e para o Estatuto do Eleito Local.
* Presidente da Assembleia Municipal de Ílhavo. Intervenção no XXVI Congresso Nacional da Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP).