É com profunda emoção que participo no acto comemorativo dos 25 anos do 3º Congresso da Oposição Democrática, em 1973, cujo significado, ajustado pela distância a que hoje nos encontramos, está tão ligado à ruptura política que o 25 de Abril originou.
Por Jorge Sampaio *
* A pretexto da morte do antigo Presidente da República, publicamos o discurso proferido na sessão comemorativa do 25º Aniversário do III Congresso da Oposição Democrática, em Aveiro, a 4 de Abril de 1998, dia em que também distinguiu a ‘Cidade de Aveiro’ como membro honorário da Ordem da Liberdade. Jorge Sampaio faleceu esta sexta-feira, aos 81 anos. Foi o mais alto magistrado da Nação entre 1996 e 2006 (continuar para artigo da Rádio Renascença).
É com sentida emoção que me associo à homenagem cívica que aqui se presta aos seus inspiradores e obreiros, destacando a memória daqueles que já não podem aqui celebrar connosco.
É com intensa emoção que vivo este momento. Através dele é possível evocar trajectórias e sinais, rever companheiros e lembrar atitudes, revisitar os projectos que animaram combates e deram sentido à forma como participámos na vida colectiva.
Por aqui, por esta história que ajudámos a fazer e que hoje de certa forma ajudamos a escrever, passam diversas gerações portadoras de uma lúcida e generosa vontade de mudar as coisas de “fazer um mundo melhor”, como pedia esse nome querido de Aveiro, Mário Sacramento.
A luta política contra o autoritarismo desenvolveu-se desde cedo em duas dimensões: a da luta clandestina, arrostando corajosamente a malha policial repressiva; e da chamada luta legal que procurava explorar os pontos mais vulneráveis do aparelho jurídico-constitucional do Estado Novo.
Ocasiões privilegiadas eram neste aspecto as eleições – uma farsa de eleições é certo, e que a Oposição sempre contestou, independentemente do modo como tivesse decidido nelas participar. Os Congressos de Aveiro estão ligados a contextos preparatórios de actos eleitorais particularmente importantes para a coligação Oposicionista: as eleições presidenciais de 1958, cumprem-se agora 4 décadas; as primeiras eleições do “marcelismo”, em 1969, após o afastamento de Salazar; e as eleições de 1973, exactamente as últimas do Estado Novo.
Nesta evocação do 3º Congresso de Aveiro, permitam-me que à obra todos eles me refira. O primeiro preparou o caminho para a campanha de Humberto Delgado, quando a establidade do salazarismo foi questionada, num sobressalto cívico que despertou uma multiplicidade de consciências e de energias políticas. O segundo representou uma das mais vastas mobilizações intelectuais e políticas de sempre, implicando diversas correntes contestatárias da Ditadura no debate das novas perspectivas criadas com a substituição de Oliveira Salazar por Marcelo Caetano à frente do regime corporativo. O terceiro funcionou como uma verdadeira campanha prémonitória da queda do “marcelismo” e, com ela, do próprio Estado Novo.
É um património imenso – de ideias, de propostas, de vontades – que emprestaram dimensão e continuidade ao combate pela Liberdade, e legitimaram a construção da Democracia que a acção dos militares a 25 de Abril de 1974 tornou possível. Um património com uma pluralidade de origens e de protagonistas. Uma pluralidade rica e fecunda.
A importância do debate de ideias foi decisiva. Sem ele não teria sido possível compreendermos a verdadeira da natureza do regime que a partir de 1926 tinha sido instaurado no nosso País. A importância das propostas foi igualmente decisiva. Elas permitiram congregar à volta da alternativa democrática um credível programa e um qualificado conjunto de quadros técnicos e políticos. A importância das vontades foi também decisiva pois foi na convergência dos empenhamentos dos diversos grupos e personalidades que o combate democrático adquiriu força e eficácia.
O 25 de Abril é uma a fronteira entre a Liberdade e a Opressão. Para aqueles que o viveram foi provavelmente o acontecimento mais marcante das suas vidas. Creio que ficará também como o acontecimento mais marcante do Portugal do século XX.
O 25 de Abril inaugurou um ciclo de mudanças profundas, de que resultou a implantação da Democracia no nosso País.
A primeira mudança foi fundamental: o 25 de Abril permitiu pôr termo à guerra colonial e ao ciclo do império. Não foi aliás pequeno mérito do Congresso de 1973, que aqui comemoramos, o de ter estabelecido com clareza essa articulação entre Liberdade e Descolonização.
Toda uma geração foi tocada directa ou indirectamente pela questão colonial, na qual se jogou o destino do “marcelismo” e do Estado Novo. A guerra acabou por sincronizar todos os descontentamentos, mobilizando contra o colonialismo uma vastíssima coligação de forças em Portugal, em África, na Europa, no Mundo.
O regime democrático, corporizado no texto constitucional aprovado em 1976, mostrou uma vitalidade sem precedentes. Assegurou o funcionamento de novas instituições, nomeadamente de um poder político eleito a todos os níveis, normalizou as relações cívico-militares, garantiu o laicismo do Estado, gerou os consensos necessários a grandes reformas legislativas e administrativas, e contribuíu para uma nova projecção externa do País.
A vitalidade do regime democrático tornou possível uma relação tranquila com o passado. O debate sobre a natureza do corporativismo autoritário em Portugal, por exemplo, é hoje um tema da história e das ciências sociais. Afastámos do nosso horizonte político as preocupações com qualquer tipo de ajuste de contas com o regime do Estado Novo.
A minha convicção é que para a solidez do regime democrático, que edificámos a partir de Abril, um dos mais importantes contributos veio precisamente da diversidade e da continuidade das formas de combate contra a opressão acumuladas anteriormente.
Essa experiência de gerações conferiu-nos uma dignidade e um orgulho preciosos. A dignidade e o orgulho dos povos que nunca se vergaram à tese segundo a qual um país pobre e periférico estaria condenado à ditadura.
Ora, a nova república que erguemos procurou aliar um projecto de conquista da liberdade com um projecto de desenvolvimento do país e de abertura ao Mundo, principalmente à Europa. Apesar das dificuldades, esse tem sido o grande caminho que os resistentes dos anos 30 a 70 sonharam e em que os construtores da democracia das décadas seguintes se têm empenhado. O fim da guerra colonial permitiu-nos não só a democratização do país, como lançar as bases de um relacionamento fraterno e responsável com a África e o Mundo de língua portuguesa. Permitiu-nos ainda retomar as relações com a Europa, segundo um modelo de cooperação e da solidariedade entre nações.
A nova república portuguesa tem hoje o seu destino ligado a esse espaço, sem excluir nenhum dos novos relacionamentos tradicionais, onde se aprofunda não apenas a liberdade como a igualdade de oportunidades, tanto os direitos humanos como a promoção económica e cultural das sociedades.
Temos perante nós, certamente um destino exigente, que nos obriga a uma permanente ampliação da nossa cidadania e a uma permanente valorização das nossas capacidades e recursos. Mas é o único que vale a pena e é digno do legado combativo das gerações que nos precederam.
Aveirenses,
Não quis deixar passar esta data sem assinalar de uma forma simbólica o papel da cidade Aveiro como pátria de liberdade. Os Congressos aqui realizados testemunham esse aspecto que sem dúvida identifica uma comunidade, as suas instituições e as suas gentes. Um olhar pelo passado de Aveiro revela outros exemplos de amor à liberdade e de capacidade de sacrifício em nome dos valores que lhe estão associados. A rebeldia aveirense marcou por diversas vezes a história contemporânea de Portugal.
Meus amigos: o que podemos felizmente dizer com serenidade é tão simples; 25 anos depois – valeu a pena.
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