O Metaverso e o fantasma ético que não tem direito a avatar

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Metadados (Imagem gráfica).

O contexto pandémico que temos atravessado foi, talvez, o maior acelerador da necessidade de levar para o digital/ virtual os diversos espaços físicos. Com este estímulo, o Metaverso entrou no nosso dia a dia de modo divertido, leve e despreocupado como aliás já se tinha verificado com as plataformas Second Life e Roblox (p. ex.). Tem-se apresentado muito prometedor no âmbito dos cuidados personalizado de saúde, na promoção de hábitos e dietas saudáveis ou até nas diversas estratégias empresarias. A questão que se coloca é se estamos perante o mesmo nível de desenvolvimento ao nível da antecipação dos desafios éticos e sociais que lhes são subjacentes.

Por Lia Raquel Neves *

Em Privacy is Power a filósofia Carissa Véliz descreve, entre tantas outras coisas, como é que através de dispositivos como o nosso smartphone os dados recolhidos sobre gostos pessoais, hobbies, hábitos, relacionamentos, medos e problemas médicos são usados como moeda de troca entre empresas e governos. Coincidentemente, há poucos dia atrás, saiu um estudo da Mckinsey , evidenciando que vários executivos relatam que a sua organização teve, no mínimo, uma ‘violação de dados relevante’ nos últimos três anos. Porque é que enunciar a questão deste modo parece ser mais consternador do que falar da segurança de dados inerentes às novas experiências no Metaverso?

Ainda não se sabe ao certo como é que os dados pessoais estão a ser recolhidos (entre eles os biométricos e fisiológicos) e armazenados – desde a exposição dos mesmos, ao modo como será protegida a identidade real e para que fins serão usados no aprimoramento das novas experiências no Metaverso. A normalização deste princípio de incerteza em detrimento da mais valia das novidades apresentadas enquanto promessa de progresso e igualdade social parece favorecer a ausência de questionamento. Não será confuso assistir à contínua referência ao escândalo Cambridge Analytica e, no momento seguinte, abdicar da privacidade como quem oferece o poder de interferência na sua vida diária sem qualquer contrapartida?

Estas novas possibilidades em mundos digitais virtuais partem de um conceito que diz respeito à interação humana com a tecnologia. Um simples exemplo disso diz respeito ao modo como os avatares (por exemplo) assumem a extensão da nossa vivência e identidade através da realidade aumentada e dos ambientes virtuais. Pode dizer-se que a tendência do futuro é que o mundo físico seja partilhado com as experiências interativas digitais e as informações 3D – tudo isto interconectado. Ou seja, uma nova extensão da internet tridimensional. Todavia, se aceitar que o Metaverso ainda está no domínio experimental e o seu alcance total no âmbito especulativo, não seria o momento oportuno para discutir uma economia global mais igualitária?

Sabemos que as aplicações ao nível do Metaverso dependem de uma convergência de eventos, desde a implantação de hardware até o desenvolvimento de infraestrutura de dados, mas é sempre certo que a tecnologia atua, a maioria das vezes, como catalisador para o desenvolvimento económico (sem esquecer tudo o que isso também significa ‘Tech for Good’). É possível assumir que apesar dos ecossistemas virtuais ainda estarem em desenvolvimento, já não há dúvidas que tecnologia blockchain e a moeda digital fazem parte da sua implementação. Acrescentando a este aspeto o facto de diversas marcas estarem a expandir a sua visibilidade no mundo virtual aquilo que está em causa, neste momento, é já a ampliação de lucros e uma porta aberta para o fim da descentralização do Metaverso.

No que diz respeito aos desafios éticos e sociais que lhes são subjacentes, antes de qualquer outra questão, não parece admissível omitir o facto de que 30% da população mundial (dados de dezembro de 2021) continua sem acesso à internet. Verificando-se uma distribuição de acesso online desigual na população mundial é válido sublinhar que o Metaverso pode tornar-se uma janela de ampliação deste primeiro fator e não numa ferramenta de redução desta disparidade como se comunicou no momento das primeiras ideias que surgiram fora do contexto mainstream.

Tem-se constatado que este salto tecnológico ainda não contemplou devidamente a elaboração e implementação de políticas, levando ao processo inverso de experimentação primeiro e posterior definição de guidelines por manifestação de consequências ao nível de: hackers, catfishing, assédio, turismo de identidade, discurso de ódio e cyberbullying, manifestações neurológicas e comportamentais adversas, etc.

Neste sentido, alegar que as questões éticas e sociais inerentes ao Metaverso são recentes, salvas especificidades das tecnologias emergentes, não é mais do que uma fuga daqueles persistem em não discutir estas mesmas questões no contexto não digital. Esta negação constitui-se como um motor de abrandamento aos diferentes processos de auditoria e regulamentação necessários. Se há investimento financeiro adjudicado ao escalonamento e crescimento de cada novo projeto no Metaverso tem que ser acompanhado de… pense por si!

*  Formada em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, integrando, de seguida, o Mestrado em Saúde Pública, na Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Trabalhou no Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra (Grupo de História e Sociologia da Ciência), investigando questões que entrecruzam a filosofia e sociologia da ciência com a evolução histórica e científica do conceito de saúde, bem como questões de ética prática e bioética. Artigo difundido pela Associação Portuguesa de Imprensa.

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