O Fogo e o Comportamento

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Combate a incêndios florestais.

Vivemos num mundo onde a maioria da população está afastada da natureza. A crescente urbanização, a comodidade das tecnologias modernas e o ritmo acelerado da vida afastaram-nos de muitas práticas tradicionais, entre elas o uso do fogo. No entanto, é crucial que reconheçamos a sabedoria ancestral e o conhecimento das comunidades rurais e indígenas, que sempre usaram o fogo com respeito e sabedoria. Hoje, a sociedade moderna, predominantemente urbana, tende a temer ou simplesmente rejeitar o fogo, sem entender a sua importância para quem dele necessita, incluindo os ecossistemas adaptados.

Por Emanuel de Oliveira *

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Quanto mais distantes estamos da natureza, mais difícil se torna compreender o papel do fogo para quem vive em harmonia com a natureza. Essa distância cria medo e desconfiança. O fogo, que nos fez humanos e moldou a nossa evolução ao nível físico e cognitivo, mas também como seres sociais, está a perder o seu lugar no nosso quotidiano. E com a sua ausência, algo essencial na nossa conexão com a natureza também se está a perder.

No passado, o fogo reunia-nos. Era à volta da lareira que a família se juntava no serão, partilhando histórias, calor e uma sensação de união. Hoje, a lareira foi substituída por aquecedores ou ar condicionado, afastando-nos desse ritual de convivência. Perdemos o contato com o fogo que trazia não só calor físico, mas também emocional, conectando-nos com os outros e com a própria natureza. É natural que, ao fazermos uma fogueira, as pessoas se aproximem, dancem, cantem ou simplesmente contemplem. O fogo exerce um papel acolhedor, criando um ambiente de proximidade e conexão.

A preparação de uma refeição também era um processo que envolvia o fogo. Cozinhar a lenha exigia tempo, paciência e um certo ritual. A lenha selecionada era colhida numa determinada época, armazenada, o fogo era acendido com dificuldade e havia a necessidade de cuidar o fogo para que não se extinguisse, e o processo de cozinhar tornava-se uma celebração da vida e dos recursos naturais – era uma dádiva da Natureza. Agora, com placas vitrocerâmicas e fornos elétricos, a ligação ao fogo desapareceu, bem como a consciência pelo respeito à manutenção dos recursos.

O fogo, transversal a várias religiões e crenças, tem um papel central em rituais que ainda hoje persistem, como a Festa de S. João. O fogo era considerado sagrado e um meio de ligação com o divino. Atualmente, essa simbologia também está em transformação, com velas votivas nas igrejas sendo substituídas por lâmpadas elétricas.

Uma grande parte da sociedade moderna desconhece o fogo. Não compreende o seu poder transformador, nem a sua capacidade de regeneração quando utilizado com sabedoria. O fogo, que para muitos é sinónimo de destruição, é, na verdade, uma ferramenta de renovação para as comunidades rurais e indígenas. Em muitas partes do mundo, estas comunidades utilizam o fogo de forma cuidada para limpar terrenos, regenerar ecossistemas e garantir assim, a segurança alimentar e a sustentabilidade dos recursos. É uma prática ancestral, sustentável, conservada pelo conhecimento profundo dos ciclos naturais.

O medo do fogo, no comportamento humano, está profundamente ligado ao desconhecimento e à falta de familiaridade com ele. Historicamente, o fogo foi um elemento essencial para a sobrevivência e o progresso, mas também uma força perigosa e imprevisível. Quando o ser humano não compreende algo, é natural que a primeira reação seja de desconfiança e, muitas vezes, medo. Isso ocorre não só em relação ao fogo, mas também em diversas áreas da vida, como nas relações interpessoais, onde o desconhecido provoca cautela e até afastamento.

À medida que a sociedade se distanciou do uso quotidiano do fogo, substituindo-o por outras fontes de energia, como eletricidade e combustíveis fósseis, o contato direto com o fogo tornou-se cada vez menos comum. Com essa mudança, a relação de proximidade e domínio que os nossos antepassados tinham foi-se perdendo. Este afastamento tecnológico reflete-se no comportamento humano, onde o medo persiste, não mais devido à sua presença constante, mas pela crescente raridade do uso do fogo no quotidiano. Assim, o fogo, outrora uma ferramenta familiar, tornou-se um símbolo de perigo, algo que deve ser controlado tecnicamente ou evitado, em vez de compreendido e integrado à rotina. Essa transformação revela como o afastamento físico e prático do uso do fogo afeta também a forma como as pessoas percebem e sentem suas emoções em relação a ele. Esta predisposição para temer o desconhecido ou o imprevisível, como o fogo, faz parte do mecanismo humano de sobrevivência. Quando há falta de familiaridade, o sistema nervoso ativa respostas automáticas de alerta, aumentando a cautela e gerando o afastamento.

Atualmente, assistimos, sobretudo nas redes sociais, a um fenómeno da modernidade: a proliferação de opiniões sobre o fogo por indivíduos que, vivendo em meios urbanos e sem qualquer conhecimento ou contacto direto com o seu uso, difundem discursos infundados. Muitos destes indivíduos condenam o uso do fogo, sem distinguir entre o fogo e os incêndios devastadores. Esta confusão entre fogo e incêndios leva a debates superficiais e pouco fundamentados, mediatizados, muitas vezes ignorando a importância do fogo em contextos agrícolas, culturais e rituais, bem como o seu uso sustentável em zonas rurais e por povos indígenas. Tudo isto resulta da falta de intimidade e, inclusive, de respeito em relação ao fogo e às comunidades que ainda o utilizam. Esta atitude é particularmente evidente nas redes sociais, onde abundam opiniões desinformadas e preconceituosas.

É urgente reconectarmo-nos com a natureza e com o fogo! O fogo não deve ser temido, mas compreendido e respeitado. Precisamos aprender com aqueles que mantêm viva a relação íntima entre o fogo e a natureza, para garantir que as futuras gerações não apenas preservem este conhecimento, mas também as relações que o seu uso promove, tanto no que diz respeito às interações humanas quanto aos serviços ecossistémicos.

O distanciamento da natureza está a desumanizar-nos. O fogo, que outrora nos uniu, está agora esquecido. Ao recuperarmos o respeito e a compreensão por este recurso essencial, podemos reencontrar uma parte de nós que tem estado perdida. Afinal, o fogo não é apenas calor e luz, é também conexão, cultura e humanidade.

Não afirmo que o fogo seja a solução para tudo, mas também não acredito que as políticas implementadas ao longo de quase um século para a sua exclusão total, promovidas por aqueles que ignoram as importantes relações que existem entre o fogo e os ecossistemas, tenham contribuído efetivamente para a prevenção dos grandes incêndios florestais em Portugal, ou no mundo.

* Técnico de fogo, investigador. Artigo publicado originalmente em Fogosflorestais.pt.

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