Desde garoto, pedindo, às pessoas, para me levarem com elas, até ser o sócio de bancada nº 1 538. O jogador aveirense mais antigo do Beira Mar, que me lembro de ver jogar, foi o Maximiano, que veio a ter uma serralharia no Rossio e era especialista em abrir fechaduras de cofres.
Por Diamantino Dias *
Quando vi, na TV, pessoas a quem eram dadas cadeiras plásticas como recordação do recinto desportivo em epígrafe, ocorreu-me consultar o meu computador neuronal, para ver o que lá estava arquivado. Comecei por ter uma surpresa, porque naquele nome não havia nada. A razão, porém, era bem simples: é que para mim, e para muitas pessoas do meu tempo, o Estádio chamava-se e continua a chamar-se “Campo de Futebol” ou “Campo do Beira Mar”. Assim, é neste Ficheiro que tenho guardados os respectivos documentos, dos quais, hoje, vou tornar públicos alguns.
Curiosamente, o primeiro que me apareceu, e que estou agora a visualizar, refere-se à inauguração de um pequeno monumento a Mário Duarte, erigido no topo do grande canteiro, plantado diante da entrada principal do recinto. Não sei se esta cerimónia não terá estado integrada no baptismo do Estádio com o nome do ilustre e eclético desportista, avô do poeta Manuel Alegre.
Mais estranho ainda, é que, tendo eu assistido a inúmeras e variadas manifestações no Mário Duarte – Juramentos de Bandeira, Concertos Musicais, um jogo de Basquetebol entre o Harlem Globetrotters e uma equipa chinesa, um jogo de Andebol de 7 entre uma equipa alemã e a Selecção de Aveiro e um jogo de Hóquei em Campo, creio que entre o Leixões e o Futebol Benfica, para não falar das milhares de horas de Futebol -, o acontecimento passado naquele recinto, que ficou mais indelevelmente gravado na minha memória, nada tenha a ver com isso, sendo, até, bastante macabro, como a seguir se verá.
Em garoto, andava a brincar aos “Polícias e Ladrões”, perto dos antigos balneários, que ficavam junto ao Parque, numa zona bastante arborizada. Vislumbrei um vulto, com a cabeça inclinada e saquei a minha pistola de barro preto, comprada na Feira de Março, mandando-o pôr as mãos ao ar; como ele não obedeceu, fui-me aproximando, cautelosamente, e repeti a ordem; quando cheguei perto, vi que se tratava de um homem novo que se tinha enforcado. A corda estava presa na forcada dum ramo baixo e, como o tronco da árvore era fino e flexível, os pés rasavam o chão. Gritei pelos meus colegas e chamámos o senhor Adriano, o Guarda do Parque, que avisou a Polícia. Nos anos sessenta, quando o Turismo estava instalado no nº 95 da Avenida Dr. Lourenço Peixinho, vi outro enforcado, mas isso foi outra história.
Quando, na década de quarenta, foi proibido jogar futebol na rua, a rapaziada das “5 Bicas” continuou a utilizar, à sorrelfa, os seus campos privativos – Largo, Rua do Quartel e Travessa das Olarias – e, quando alguém pressentia a aproximação de um agente da autoridade, dava o grito de “Olha o Cuco!”; quem estivesse de posse da trapeira punha-a no bolso e cada um desaparecia para o seu lado. Mas, quando começámos a ser mais velhos, ou para jogos internacionais contra o Alboi, São Domingos ou Pombinhas, passámos a utilizar, durante o dia, um terreno existente por trás das primitivas bancadas de madeira, no Campo do Beira Mar.
No que respeita ao campo propriamente dito, que teve duas orientações topográficas, joguei lá dois ou três jogos inter-turmas do Liceu. Para além da autorização da Câmara Municipal, proprietária das instalações, tínhamos que contar com a colaboração do Carlos Mosca (Carlos Martins Arroja), empregado do Clube que tratava do campo de terra batida e dormia num pré-fabricado, junto da entrada principal.
Como elemento da Milícia – Instituição paramilitar que se seguia à Mocidade Portuguesa e em cujas actividades eram obrigados a participar todos os alunos do 3º Ciclo do Liceu, às quartas-feiras e sábados, à tarde -, no local, onde em garoto, tinha jogado à bola, fiz tiro ao alvo com a “Menelik” (com a “Mauser” disparei nas Carreiras de Tiro Militares), e, em aproximadamente um terço do perímetro exterior do recinto, percorri o Campo de Obstáculos, lá montado, para instrução dos militares do Regimento de Infantaria 10. Lembro-me da Trave de Equilíbrio, da Vala, do Muro, da Paliçada, do Arame Farpado e do Galho.
Tínhamos, também, de prestar várias provas atléticas: saltos, lançamentos e corridas. Havia uma Caixa de Saltos e as corridas eram efectuadas no campo.
Como utente, recordo-me de, durante uns meses, ter treinado o lançamento de dardo, com o então colega do liceu Carlos Candal, que, hoje, tem nome de avenida, utilizando um tubo de ferro galvanizado, com uma ponteira adaptada e um cordel enrolado, a servir de pega. Nunca tive muita força, mas, como os meus braços são compridos, atirava relativamente longe; tive de desistir, porque, não fazendo uma preparação conveniente, arranjei uma tendinite. A pista era o predito terreno atrás da bancada.
Por volta de 1953, quando a ampliação do Hospital fez desaparecer o campo de basquetebol, utilizado pelo Clube dos Galitos e pelo Recreio Artístico, foi construído um outro atrás da baliza do lado do Parque (ainda não havia Peão em rampa), onde eu treinei e joguei, quando era júnior do Galitos, até se passar para o saudoso rinque, junto da avenida Artur Ravara.
No que respeita ao Futebol, assisti a inúmeros jogos. Desde garoto, pedindo, às pessoas, para me levarem com elas, até ser o sócio de bancada nº 1 538. O jogador aveirense mais antigo do Beira Mar, que me lembro de ver jogar, foi o Maximiano, que veio a ter uma serralharia no Rossio e era especialista em abrir fechaduras de cofres.
No que respeita a estrangeiros, foi o Petrak. Falarei só do último jogo a que assisti. Estava em casa. Era domingo, à tarde. Nem me lembrava que havia futebol. Ouvi barulho no campo e resolvi ir ver. Não fui para o sítio habitual.
O adversário era uma equipa totalmente equipada de preto, com o nome de um refrigerante no peito. Não vi marcar golos. O Marcador não tinha nenhum número, nem letras. No final, quando vinha na avenida das Tílias, um miúdo perguntou-me pelo resultado e eu respondi: “Zero a zero”. De imediato, fui corrigido por por alguém, dizendo que o Beira Mar tinha ganho por 2 a 0. Provavelmente, teriam sido os aplausos referentes a um desses golos que eu teria ouvido em minha casa.
Aproveitei a oportunidade para perguntar com quem tinha jogado o Beira Mar. Tinha sido o Académico de Viseu. Fui para casa a pensar no assunto. Era sócio de bancada; nem sempre ia ao futebol; às vezes era Dia do Clube e tinha de pagar; não ligava muito ao futebol, pois eram o andebol e o basquetebol os meus desportos preferidos.
Tomei uma decisão e quando o senhor Alberto, Contínuo e Cobrador do Clube, apareceu para cobrar a cota, disse-lhe para participar à Direcção que eu queria deixar de ser sócio do Futebol e passaria a ser unicamente sócio do Clube. Passados uns dias, o senhor Alberto apareceu a dizer que não existia essa espécie de associados no Beira Mar. Respondi-lhe que deixaria de ser sócio. Ele tentou demover-me, dizendo que eu já era sócio há muitos anos e que até tinha sido treinador de Andebol do Clube, durante dez anos. Não voltei atrás com a minha decisão.
A partir de Dezembro de 1983, nunca mais assisti, pessoalmente, a nenhum jogo de futebol em Portugal, a não ser a dois, integrados num Torneio Internacional de Juniores, patrocinado pela Região de Turismo da Rota da Luz.
Vou terminar este arrazoado, falando de duas coisas inusitadas de que poucos se recordarão e que me vieram inesperadamente à ideia. O “Casino” que funcionou no Peão, ainda de terra batida, do lado sul, e de algo que acontecia, na parte arborizada, junto do Parque e na zona relvada, perto do portão do lado do Hospital.
No supracitado Peão, estiveram depositados, durante algum tempo, uns grandes blocos de pedra branca que eram usados, o maior, como mesa e os outros, como assentos, pela rapaziada que ia para lá jogar à batota: sete e meio, lerpa e montinho.
A segunda predita actividade era a prostituição, praticada, especialmente no Verão, entre outras, pelas vendedeiras de camarinhas, que vinham de uma praia mais a sul, e que, assim, tentavam ganhar, literalmente, mais uns tostões, porquanto era essa a moeda utilizada, há setenta anos, quando o serviço era efectuado ao ar livre.
As camarinhas, na altura, e segundo constava de uma bonita canção de uma Revista, levada à cena pelo Clube dos Galitos, vendiam-se “a três (medidas) um tostão,/Oh!, quantas saudades minhas,/ Oh!, quanta recordação!”
Quem me diria que num texto de memórias com este título, eu quase o começaria escrevendo sobre enforcamentos e o acabaria abordando a mais antiga profissão, com camarinhas à mistura.
A minha memória prega-me cada partida!
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).