O Centro em descaraterização avançada

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Canal central, Aveiro.

Se alguém acredita que este modelo de desenvolvimento pode constituir o futuro de Aveiro, desengane-se.

Por Filipe Guerra *

As profundas transformações sociais e dos elementos característicos do centro do Concelho de Aveiro não são tema novo e tão pouco se pretende neste artigo trazer novidades ou uma qualquer “leitura refrescada”. Mas sim, chamar atenção para alguns aspectos mais notórios e perigosos da presente situação económica, social e cultural do centro do Concelho.

Fruto de circunstâncias de conjuntura internacional, e também nacional, no centro de Aveiro na última década iniciou-se um processo de transformação urbana significativo. Um processo, diga-se, em que Aveiro não detém nem o exclusivo nem a originalidade, sendo estas transformações similares a outras ocorridas e a ocorrer num conjunto de cidades e vilas portuguesas(e não só) com maior exposição ao turismo e especulação imobiliária.

Observando, mesmo que superficialmente essas transformações, facilmente ressaltam três elementos-chave que são simultaneamente causa e efeito da descaracterização em curso do centro de Aveiro: o processo de envelhecimento e gentrificação(redução de moradores em áreas centrais) dos moradores do centro, o desaparecimento do comércio tradicional e sua reconversão noutros géneros comerciais, e por último o desenvolvimento feroz da especulação imobiliária. Acresce que qualquer um destes elementos produz ainda outros subprodutos negativos.

Pouco tempo antes do seu perecimento enquanto tal, a Freguesia da Vera-Cruz tinha cerca de 30% do seu parque habitacional abandonado, facto que se tem vindo a inverter nos últimos anos com a multiplicação de pequenas unidades de hotelaria e de alojamento local, não tendo ainda assim isso significado qualquer aumento demográfico, pelo contrário, fruto da lei dos despejos de Assunção Cristas. Assim, o centro é hoje movimentado pelo comércio e alguns serviços sobreviventes, por uma população idosa e especialmente pelo turismo e outros utilizadores da cidade(estudantes ou trabalhadores de passagem). Não se registando uma renovação dos moradores tradicionais, originários de classes populares e trabalhadoras, mas sim o seu desaparecimento ou substituição, com graves consequências demográficas, culturais e sociais no presente e futuro próximo.

O comércio tradicional igualmente sofreu alterações significativas, que em rigor já se tinham começado a concretizar com o avanço em cerco geográfico e desregrado das grandes superfícies comerciais, mas que teve nova aceleração recente. O comércio tradicional, variado nos seus ramos e diversidade, e também nas suas tabelas de preços, foi num primeiro momento falido por esmagamento económico pelas grandes superfícies e agora é substituído por um modelo de comércio focalizado no turismo, e consequentemente menos variado e mais caro. Lojas de recordações e objectos “tradicionais” pululam reproduzindo uma caricatura forçada do passado, de cultura kitsch e rasteira, reduzindo a História e Tradição ao pitoresco comercial. Simultaneamente espaços tradicionais de restauração e similares são substituídas pela cultura gourmet, de fachada anglófona, cara e dirigida ao turismo e classes altas, e também por via desta reconversão e encarecimento as classes populares são afastadas do usufruto do centro, descaracterizando-o nos seus protagonistas.

Simultaneamente a este processo, a especulação imobiliária avança ao sabor dos desígnios do sacrossanto “mercado”, reduzindo progressivamente o centro da cidade para as diversas tipologias de hotelaria e limitando progressivamente a sua acessibilidade para habitação apenas às classes altas, as únicas com poder económico para acesso à habitação no centro após a chamada “reabilitação urbana”, que por via dos seus preços pouco mais tem servido que para afastar as classes populares. Como efeito secundário, também nas áreas periurbanas o preço da habitação, respondendo novamente ao aumento de procura que não tem resposta no centro, igualmente aumenta. Isto num contexto laboral em que não se registam aumentos salariais significativos ou proporcionais.

Se alguém acredita que este modelo de desenvolvimento pode constituir o futuro de Aveiro incorre em erro grave. É precisamente o contrário. Qualquer modelo que privilegie conjunturas circunstanciais, o turismo sobre a população, que substitua a população, seus hábitos e costumes promovendo visões caricaturais da História e Cultura aveirense, ou que embarque num processo continuado e extenuante de ‘disneylandização’ do centro histórico desengane-se, que a mentira tem perna curta e mais cedo que tarde a descaracterização acabará por ser má para o negócio.

Os poderes políticos e públicos não se devem alhear deste processo, nas suas causas, características e consequências, submetendo-se às mais variadas pressões e interesses mais ou menos inconfessados, à especulação e aos perigosos desígnios do mercado imobiliário, e esquecendo que a desertificação e descaracterização do território têm preços políticos, sociais, culturais e até económicos significativos e cuja recuperação pode ser impossível.

* Jurista, vogal do PCP na Assembleia Municipal de Aveiro.