A guerra continuou com o abate de árvores em pleno parque da cidade, alguns deles exemplares centenários e icónicos que não faziam mal a ninguém, e que não ofereciam qualquer perigo para a segurança pública.
David Iguaz *
Segundo o dicionário Priberam, um dendroclasta (do grego dendro para árvore e Klastós: romper, quebrar, frustrar), é aquele que não respeita as árvores e mostra indiferença em relação a sua preservação.
Aveiro foi palco, há duas semanas atrás, de mais um ataque efectuado ao seu património arbóreo quando viu nascer mais um largo urbano no centro da cidade.
O ‘largo das 5 bicas’, com os seus tradicionais jacarandás, foi o último espaço a ser objeto dum abate implacável ao qual a autarquia nos tem vindo a habituar durante este mandato. Aquele lugar deixou de proporcionar aquela altivez, vestida dos mais variados tons de violeta, azul e lilás a que estivemos acostumados durante décadas.
Aquela sombra que esteve presente naquele lugar desde finais do século XIX anos pereceu, para dar lugar a mais um espaço árido e esterilizado que aniquila qualquer possibilidade de usufruto comunal no futuro.
Infelizmente, os exemplos anteriores de “urbanização” na Praça Marques de Pombal e no Jardim do Alboi, não serviram de atenuantes para evitar mais um atentado contra a memória arbórea da cidade. Se ainda por cima pensarmos nos mais de 400.000€ do erário municipal que foram gastos nesta última obra camarária, a revolta torna-se ainda maior.
Infelizmente, este é, tão só, o último exemplo da guerra aberta que o nosso presidente da Câmara decidiu travar contra o património natural da cidade. Tudo começou com o projeto de “requalificação do Jardim do Rossio”.
A guerra continuou com o abate de árvores em pleno parque da cidade, alguns deles exemplares centenários e icónicos que não faziam mal a ninguém, e que não ofereciam qualquer perigo para a segurança pública.
Aconteceu em Cacia, com o abate de dezenas de exemplares na Rua dos Bombeiros da Celulose e que até hoje ainda não foram nem sequer substituídos, contrariamente ao prometido. Voltou novamente a acontecer na Rua da Nossa Senhora das Necessidades em Esgueira. Aconteceu ao lado do edifício do Tribunal que acabou com as únicas árvores de porte que sobreviveram à razia da construção do parque de estacionamento subterrâneo do Marquês de Pombal. Aconteceu recentemente na Rua da Pega com dezenas de exemplares de choupos e palmeiras dizimadas sem piedade transformando irremediavelmente aquele espaço, entre outros. Mas, por desgraça, a guerra não acaba aqui.
Prevê-se que continue inexoravelmente em São Bernardo ao pé da escola de 2º e 3º ciclo cujas árvores tem uma morte anunciada conforme apregoado antes do aparecimento da presente Pandemia.
Que continue na Avenida 25 de Abril acabando com os choupos tão representativos daquela artéria da cidade e que avance também na Avenida Dr. Lourenço Peixinho, já habituada a desaires parecidos.
Ninguém sabe onde é que esta perseguição irá acabar mas é previsível que continue. Neste momentos de incerteza mundial, a frente de batalha não deveria ser o património natural e ambiental mas sim a preservação do património humano no período pós-pandemia que se avezinha muito duro para todos os cidadãos e no qual deveriam concentrar-se todos os esforços futuros desta autarquia, em vez de continuar com uma política de expansão do betão e de “praças urbanas” que não fazem se não deformar a identidade intrínseca da cidade e hipotecar o seu futuro.
Receio que as prioridades continuem a confundir-se nos próximos tempos.
O nosso Presidente, arvorando-se (e desculpem a expressão) em defensor ambiental mandou recentemente esta gema: “A sacralização da árvore é tão absurdo como tratá-las de forma indigna”. A leitura desta frase merece alguma reflexão. Será que a preservação de árvores que demoraram dezenas, se não centenas de anos a crescer, que oferecem uma sombra valiosa nos dias de calor diminuindo a temperatura ambiente das cidades em dias de intenso calor, e que absorvem quantidades nada despreziveis de CO2, não se pode considerar de sagrada? Será que após o longo passar dos anos, as árvores não terão ganho o direito básico de coexistir connosco ?
A resposta está em cada um de nós. Um a coisa é certa, o património arbóreo de Aveiro, já de por si escasso, será dizimado de vez em breve, caso os Aveirenses não se manifestem contra esta falta de respeito pelo património de todos nós. Se cortar uma árvore não é trata-la de forma indigna, sinceramente prefiro não pensar qual será a ideia do nosso presidente que qualifique tratar uma árvore dessa forma.
As justificações para semelhantes atropelos não têm faltado e variam desde o já batido e gasto argumento da prevenção de acidentes em prol duma futura segurança para as pessoas em caso duma possível queda (ao contrário de declarações iniciais sobre as máscaras sanitárias, isto sim é uma sensação de falsa segurança), passando pelo suposto mau estado de conservação dos exemplares em questão, até o mero empecilho para as obras particulares e públicas espalhadas pela cidade, pois as árvores estariam “no sitio errado”.
Já nem falo do dano irreparável que as árvores causam aos passeios e arruamentos e que, claro, deve ser travado a toda custa. A natureza tem estas chatices, ela tem uma tendência inabalável para desenvolver-se fora dos parâmetros do “desenvolvimento urbano” e é obvio que não se coaduna com a ideia de praças urbanas que o nosso presidente tanto idolatra. Resulta curioso que quando o nosso autarca é confrontado com a possibilidade real de danos para o edificado na zona do Rossio por causa das obras de construção dum parque de estacionamento subterrâneo, e o subsequente risco para seus moradores que daí poderia advir, a resposta seja a de que “há seguros” para essas situações.
Segundo o Ribau Esteves a problema deste abate sistemático resolve-se, simplesmente, plantando exemplares novos e “certos” no seu lugar. Claro que o facto da plantação de uma árvore nova demorar em média quase meio século a atingir o tamanho do exemplar abatido não é tido em conta. Nem o efeito visual adverso que daí advirá durante dezenas de anos. Nem o CO2 que não será absorvido entretanto. Nem a sombra que deixará de dar com o passar do tempo.
Para citar o escritor William Ospina: “Tudo nos faz lembrar que podemos viver sem aviões, mas não sem oxigênio. Que aqueles que mais trabalham pela vida e pelo mundo não são os governos mas sim as árvores. Que felicidade é saúde, como Schopenhauer queria. Que como disse um latino, a religião não consiste em ajoelhar-se, rezar e implorar mas em olhar à volta com uma alma tranquila”
Acabo esta reflexão com uma outra citação recente do nosso presidente, a propósito do anunciado abate em São Bernardo: “amamos toda e cada uma das árvores”. É caso para dizer que, com amantes de árvores como este, elas não precisam de inimigos.
* Arqueólogo, consultor.