Numa aldeia remota vive uma mulher que desconhece a liberdade

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Capa.
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Conheci-a num domingo de Páscoa. Eu tinha-me perdido naquele emaranhado de caminhos sinuosos dentro de um velho todo-o-terreno, e foi ela a primeira pessoa que encontrei quando já desesperava. Caía a noite na serra da Lousã, e eu nem sequer sabia onde me encontrava nesse momento.

Por Clementina Matos *

– Minha senhora – chamei, e ela ergueu o braço solícita. Já não era jovem. Aproximou-se; olhou-me em silêncio por breves instantes, e ouvi-lhe então a voz surpreendentemente límpida, quase infantil.
– Água fresca, vem de lá do alto – disse depois de saber da minha sede, enquanto apontava uma nascente que só ela conhecia. A bica dissimulava-se sob um pedaço de xisto. Pendurado no galho de um arbusto antigo e forte, achava-se o púcaro que logo enxaguou.
– Obrigada, muito obrigada – agradeci, e foi assim que soubemos, decorridos os primeiros minutos, que para sempre seríamos amigas.
– Descanso-me por aqui um pouco – disse-lhe enquanto me sentava numa fraga –, mas preciso de encontrar o caminho certo, porque me perdi.

Forneceu-me as valiosas indicações que me permitiriam encontrar o caminho até Miranda do Corvo. Chegaria lá em vinte minutos, afirmou e ficou-se ali a meu lado sentada na outra pedra, a ajeitar o estranho lenço garrido que trazia pousado na cabeça. Ao mesmo tempo, com a outra mão, ia alisando o avental distraidamente.
– Parece que estamos numa espécie de fim de mundo – comentei quase em murmúrio, como se falasse para mim mesma. E este sítio…
– Este sítio… Pois, este sítio é o Gondramaz! Isto é o Gondramaz – atalhou sorrindo, ao mesmo tempo que desenhava no ar um gesto largo. – Aqui nasci eu, aqui vivi e aqui hei-de morrer, que para outras bandas não posso eu ir.
– Pode ainda viver aqui por muito tempo, sim, mas pode também vir a conhecer outras terras – objectei sorrindo-lhe. Mas ela riu como se eu acabasse de lhe contar uma grande piada com contornos de ficção. Depois voltou ao tema de Gondramaz, aquela sua aldeia que havia sido um lugar cheio de gente no início do século. Infelizmente o povo debandara aos poucos, depois de mil novecentos e sessenta.
– Olhe, foram-se quase todos, uns para França e outros para o Brasil.
– Um belo sítio, este – comentei. Mas ela não fez caso e sacudiu os ombros. Mirou-me em seguida sorrindo-me, e eu sorri-lhe também. Então, depois de ter adquirido a certeza de que seria ouvida, até ao fim, a história triste da sua aldeia, ela ergueu os olhos à primeira estrela que nesse fim de tarde ali surgia, feliz por ter sido enfim atendida a sua prece, uma oração já débil em que solicitava aos santos do céu uma graça, o refrigério de um encontro com uma alma que lhe viesse ouvir a voz, aquela sua voz quase rouca de tantos silêncios.

Foi contando lentamente como quem reza, e eu pude ver que as suas palavras se aninhavam tímidas, como que envergonhadas, na berma do tempo.
– Faz-me pena ver tanta casa ao abandono – confessei-lhe, enquanto atirava o meu olhar ao xisto disperso.
– Pois sim – concordou fazendo um breve encolher de ombros. – E a senhora é de onde?
– Do Porto, eu sou do Porto.
– Ah…
– Sabe, se houvesse por aí uma casita barata à venda…
– Casas é o que mais há por aí – atalhou imediatamente sôfrega –, todas em cacos é bem certo, a precisarem de uma mãozinha de arranjo, vá, mas lá faltar… Não, senhora, não faltam! Ai, isso aqui… Casas aqui é que não faltam!

Os olhos da gentil serrana brilhavam com mais intensidade agora, e riam-se-lhe os braços bailantes. Parecia muito mais jovem, de repente animada por um súbito festejo naquela sua alma impaciente de novidade. Pulsava Abril nos aromas que cirandavam por aquelas paragens. Comecei a aparecer quase todos os fins-de-semana. Entretanto, pelas mãos do pedreiro Justino, a minha futura casinha foi crescendo ali na serra, ao mesmo tempo que crescia a minha afeição pela montanha imensa a coroar a aldeia. Eu viria a conhecer a história inteira de Maria das Dores pela boca da sua amiga Joaquina. Gondramaz encantava-me, e eu entregava-me ao seu fascínio. A beleza e a fealdade podem, contudo, coexistir, mesmo em sítios como este, e por isso é que me foi dado o triste ensejo de assistir a uma das mais ominosas histórias que conheci em toda a minha vida.

* Escritora. Prologo do livro “Linda como um cravo”, obra premiada em 7 de Dezembro passado, pelo Município de Portimão (Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2022). A 18 de Fevereiro de 2023 lançou no Porto o romance “O Homem que não fechava os olhos”. Apresentação na Biblioteca Municipal de Aveiro dia 24 de junho, às 16:00.

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