Na sexta-feira dia 13 de setembro comemoramos os 101 Anos de Natália Correia. Terminam assim as comemorações do centenário do seu nascimento.
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Nasceu na Fajã de Baixo, na Ilha de São Miguel, nos Açores. A infância ficou marcada pelo abandono do pai e pelos clássicos do pensamento libertário, que a mãe lhe deu a conhecer. Marcou o país e a cultura portuguesa através da sua poesia, pela sua irreverência, insubmissão, frontalidade e coragem. Lutou contra a ditadura fascista de Salazar e Caetano (foi a escritora mais censurada no Estado Novo), apoiou movimentos da Resistência Antifascista e candidatos da oposição democrática, fundou o Botequim no Largo da Graça, viu acontecer com imensa esperança e alegria o 25 de Abril embora se tenha desiludido com os radicalismos do PREC (Período Revolucionário em Curso) e chegou à Assembleia da República como deputada do PPD de Sá Carneiro e mais tarde como deputada independente pelos renovadores (PRD). Faleceu a 16 de Março de 1993.
Passados 101 anos do seu nascimento e 31 anos após o seu desaparecimento continuamos a falar de Natália Correia. E temos mesmo de continuar a falar dela. Na luta feminista, na luta pela igualdade, em cada combate, em cada avanço e em cada verso dos seus poemas lembremo-nos da Natália.
Tinha 17 anos e estava à procura de uma série na RTP Play. Encontrei no catálogo das séries nacionais a série “3 Mulheres”, de Fernando Vendrell, que aborda a história de “3 Mulheres de Palavra que fizeram Revolução”. Estas três Mulheres são Natália Correia, interpretada por Soraia Chaves; Snu Abecassis, interpretada por Victória Guerra e Vera Lagoa, interpretada por Maria João Bastos. Todas elas marcaram o Portugal do século XX, tendo sido um trio na luta contra o fascismo. Ao ver a série fiquei fascinado e rapidamente me apaixonei pela Natália. Entretanto, passado pouco tempo, a RTP anunciou uma nova temporada desta vez “3 Mulheres- Pós Revolução”. As duas temporadas estão disponíveis na RTP Play. Foi através desta série e da biografia de Natália Correia “O Dever de Deslumbrar”, escrita pela Filipa Martins, que aprofundei o meu conhecimento sobre a vida e legado desta Mulher!
Natália na Resistência
Natália nasceu a 13 de setembro de 1923 na Ilha de São Miguel, nos Açores. Filha de Maria José, professora primária e que, segundo Natália, desde cedo deu-lhe a conhecer os “clássicos do pensamento libertário”, e de Manuel Correia, um homem de quem se sabe muito pouco, mas que era conhecido por ser libertário no pensamento e conservador nos costumes. A infância de Natália foi marcada pela ausência do pai. Manuel imigrou para o Brasil passando o papel de “chefe de família” para o irmão, tio de Natália, e acabou por abandonar a família, o que levou Natália a limitá-lo ao papel de fecundador “De meu pai que das sereias foi cobridor português coube-lhe em versos a fome do lápis com que me fez”. Comparou-o bastas vezes a Ícaro, uma figura mitológica grega. Dizia que tal como Ícaro “derreteu as asas ao sol” e permaneceu incontactável no Brasil. Deixou Fajã de Baixo aos três anos quando a sua mãe teve de ir para Ponta Delgada, pois a escola onde lecionava havia sido encerrada. Aos onze anos, chega a Lisboa, pouco depois de ter entrado em vigor a constituição do Estado Novo. Natália não se adaptou e contestou a Escola do Estado Novo, que passava pelo “ensinamento das lides domésticas” e tratava as mulheres como “ simples fadas do lar”. Abandona a escola quando foi criada a Mocidade Portuguesa Feminina porque nunca quis compactuar com os aparelhos do regime fascista. Em 1946, aos 22 anos, estreia-se na literatura ao lançar um romance juvenil intitulado “Grandes Aventuras de um pequeno Herói”, e no mesmo ano tornou-se locutora do RCP (Rádio Clube Português).
Foi através da força de cada palavra e de cada verso que Natália lutou contra o fascismo, fazendo tremer muitas vezes o regime e os seus aparelhos. Apoiou também vários movimentos e candidatos da Resistência Antifascista. Em 1949 apoiou a candidatura da oposição de Norton de Matos e mais tarde, em 1959, a candidatura do General Humberto Delgado que mal vencesse as eleições pretendia “ retirar por meios legítimos António de Oliveira Salazar do poder. Obviamente demito-o!”. Natália e o General costumavam encontrar-se com alguma frequência. Ela não gostava nada de praia, mas acaba por fazer um sacrifício pela luta antifascista e encontrava-se na Praia da Torre com Delgado. Natália ia com o fato de banho e juntamente com o General ia nadar para poderem conversar a sós sobre a campanha política para fazerem frente ao regime. Esta era uma tática deles para não serem ouvidos, pois havia agentes da PIDE a vigiá-los no areal. O General Delgado acabou por ser assassinado pela PIDE a mando de Salazar, em 1965. Ainda neste ano, Natália lança juntamente com a editora CONTRAPONTO, de Luiz Pacheco, a obra “O Homúnculo”. Esta obra foi censurada e chegou às mãos do próprio Salazar que foi quem deu ordens aos PIDES para a apreenderem, mas para não prenderem Natália porque era “uma mulher muito inteligente.”.
A obra ridicularizava o ditador, a estrutura e os aparelhos do regime. Segundo Armando Nascimento Rosa, é uma “das raras obras-mestras que no teatro português consegue operar o cruzamento entre a estética surrealista, o teatro do absurdo, e a sátira política”. A poeta militou no MUD (Movimento de Unidade Democrática) e em 1969 aderiu à CEUD (Comissão Eleitoral de Unidade Democrática), movimento liderado por Mário Soares. Em 1966, a convite de Ribeiro de Mello, editor da Afrodite, criou a “Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica”, uma obra que continha cancioneiros medievais, a revelação do erotismo de Fernando Pessoa e vários poemas de Ary dos Santos, Luís Pacheco, Mário Cesariny e de Ernesto Mello e Castro. A antologia, que venceu o prémio do livro do ano Bertrand em 2019, foi uma autêntica revolução no país que fez tremer o regime salazarista. Esta foi mais uma obra apreendida pela PIDE com a justificação de que representava uma “ofensa aos bons costumes e à moral”, e que levou os poetas, incluindo Natália e o editor Ribeiro de Mello, ao Tribunal Plenário para serem julgados e condenados. É nesta altura que Natália escreve o poema “A Defesa do Poeta”, que por ocasião do seu centenário Renato Júnior transformou em canção pela voz de Mafalda Veiga.
Apesar de ter sido condenada, não foram os tribunais e a censura que a calaram. É então que em 1968, funda o Botequim, situado no Largo da Graça, em Lisboa. O bar era frequentado por resistentes antifascistas e por vários poetas e altas personalidades da cultura portuguesa como Ary dos Santos, Maria Armanda Falcão (Vera Lagoa), Luís de Sttau Monteiro, Francisco Sá Carneiro, Amália Rodrigues, Snu Abecassis, David Mourão-Ferreira e Mário Cesariny. O Botequim era um espaço de enriquecimento cultural e de conspiração política. Em 1972, Natália volta a sentar-se no banco dos réus do Tribunal Plenário por ter tido responsabilidades editoriais na obra das 3 Marias (Maria Isabel Barreno, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta), intitulada “Novas Cartas Portuguesas”, uma obra que também fez tremer o regime fascista e a proclamada e tão falsa “Primavera Marcelista”.
Natália na Liberdade
O sonho de Natália e de tantos outros portugueses é concretizado! Acontece o 25 de Abril, o regime cai e Natália vive com imensa esperança e alegria aquele grande dia. Numa entrevista, em 1983, Natália afirma que uma das maiores conquistas da Revolução de Abril foi a oportunidade e grande disponibilidade para as pessoas se organizarem! Durante o PREC (Período Revolucionário em Curso), a Natália sentiu-se desiludida com alguns radicalismos de ambos os espectros políticos e com o rumo da Revolução. Se no fascismo foi censurada, no PREC também foi. Natália escrevia para A CAPITAL, à época David Mourão-Ferreira era o diretor do jornal . A comissão de trabalhadores censurou uma das suas crónicas e ela demite-se de imediato do jornal publicando a sua crónica num outro jornal ao lado. O poeta David Mourão-Ferreira demite-se do cargo em solidariedade com Natália. Ela ficou bastante magoada com aquela baixeza censória e dizia que a repressão estava longe de acabar porque “depois do lápis azul da direita, temos agora os carimbos da esquerda”, apelidando o período do Gonçalvismo como “ditadura de extrema-esquerda”.
Natália sempre teve uma enorme admiração por Mário Soares e aproximou-se do Partido Socialista, mas acabou por se aproximar mais do PPD de Francisco Sá Carneiro, de quem também era muito próxima. Aliás, Natália Correia foi a madrinha da mais bonita história de amor que abanou os setores mais conservadores e patriarcais da sociedade portuguesa. Sim, estou a falar do amor de Sá Carneiro e de Snu Abecassis. Snu, fundadora e editora das Edições D. Quixote, estava a preparar uma coleção intitulada “Participar” onde dava a conhecer os projetos dos principais líderes políticos para o país, entre os quais se encontrava Francisco Sá Carneiro. Snu queria muito conhecê-lo e foi Natália que a apresentou ao então líder e fundador do PPD. “A Snu é uma princesa nórdica adormecida num esquife de gelo à espera do beijo do fogo do Príncipe Encantado, que é você!”. Foi desta forma que ela apresentou Snu a Sá Carneiro e eles conhecem-se pessoalmente a 6 de janeiro de 1976. Passado um tempo, Natália torna-se militante do PPD e nas eleições legislativas de 1979, vencidas pela coligação da AD, é eleita deputada. Na Assembleia da República bateu-se sempre pela emancipação e direitos das Mulheres e pela valorização das Artes e da Cultura. Numa entrevista que deu a Maria José Mauperrin no programa “Café Concerto”, em 1980, falou bastante sobre Cultura. À pergunta “Acha que a Política e a Cultura andam de mãos dadas?” Natália prontamente respondeu que Cultura e Política deviam andar de facto de mãos dadas, mas que infelizmente andam separadas. E tudo isso é verdade e atual. Infelizmente há um divórcio entre a política e a cultura. Natália afirmou ainda que era preciso uma forte política cultural e que tinha de haver vontade política para construir essas políticas. Uma frase dela que retive deste tema e desta entrevista foi “A Cultura pode condicionar a Política. A Política é que não pode condicionar a Cultura.”.
Em 1980, consegue a proeza de ser censurada novamente. Desta vez é o próprio PPD/PSD a censurar Natália. Estava a preparar a peça do quarto centenário da morte de Luís Vaz de Camões que iria estrear no Teatro Dona Maria II. É Vasco Pulido Valente, à época Secretário de Estado da Cultura do Governo de Sá Carneiro, que faz seguir um despacho com o Diretor do Teatro Nacional dizendo “Nem pensar! Uma peça de Natália não sobe a cena no Nacional.” A partir daí, ela passou a chamá-lo “Vasco que tem asco no nome”.
Ainda nesse ano dá-se a Tragédia de Camarate que acaba por vitimizar todos os que seguiam na avioneta, entre os quais Snu, o à época primeiro-ministro Francisco Sá Carneiro e o à época Ministro da Defesa Nacional Amaro da Costa e sua mulher.
Em 1982, debate-se na Assembleia da República o projeto de lei do PCP pela despenalização da IVG (Interrupção Voluntária da Gravidez). Natália foi a única deputada do campo político do centro-direita a votar favoravelmente o projeto apresentado pelos comunistas. Foi um debate intenso e numa resposta a uma das suas intervenções, o deputado do CDS João Morgado diz-lhe que “o ato sexual é para ter filhos”. Ela dedica-lhe o seu famoso poema “Truca-Truca”.
“Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o orgão – diz o ditado –
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.”
O facto do PPD/PSD se ter tornado num partido cada vez mais conservador e ter abandonado as bandeiras da social-democracia, leva Natália a sair do partido e acaba por regressar mais tarde ao parlamento, desta vez como deputada independente dos renovadores (PRD). Fica em funções até 1991, ano em que ganhou o prémio de poesia da Associação Portuguesa de Escritores pela obra “Sonetos Românticos” e que foi agraciada pelo Presidente da República Mário Soares com a Ordem da Liberdade.
Em 1984, estreia na RTP o seu programa “Mátria”. O programa era dedicado à figura feminina nos seus mais variados aspetos, sobretudo nos aspetos culturais e que contou com a colaboração daquele que viria a ser o seu último marido, o cineasta e poeta Dórdio Guimarães.
Já em 1987, IIona Staller, uma atriz pornográfica e deputada italiana mais conhecida por Cicciolina, visita a Assembleia da República. A deputada italiana foi remetida à galeria do Corpo Diplomático e mostrou os seios. Os deputados da ala esquerda riam-se e lamentavam estar de costas para Cicciolina. Já os deputados conservadores do PSD e do CDS protestavam juntamente com o Presidente da Assembleia da República da época. Todo este fervor no parlamento, leva Natália a escrever o poema “Estava o Parlamento em tédio morno”. Natália foi receber a deputada e atriz italiana, dando-lhe as boas-vindas e um abraço caloroso.
A Natália era uma Mulher de convicções muito fortes e nunca foi de disciplina partidária, aliás ela própria dizia “Só aceito a disciplina quando me demonstram que ela é uma necessidade ética ou criadora. Quando não mo demonstram, não aceito.”.
Esta Mulher para além de ter sido sempre muito à frente do seu tempo, foi sempre de uma coerência nos seus valores e ideais e foi realmente maior do que o país. Defensora dos mais frágeis, dos Direitos Humanos, da Emancipação das Mulheres e grande defensora da Cultura e de todo o universo patrimonial, histórico e artístico.
Morreu na sua casa a 16 de Março de 1993. Como disse a amiga e Dra. Helena Roseta “Daqui a 100 anos, provavelmente ninguém se lembrará de nós, mas toda a gente vai ter de falar de Natália Correia!”. Falaremos dela Sempre! Viva Natália Correia!
* Estudante de História na FLUC, Aveiro.
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