Quando eu era menino, era muito pobre e, para mim, o Natal era um luxo” dos outros meninos, ricos ou remediados. Sapatinho na chaminé, da qual desceria o “menino Jesus”, qual Pai Natal de que nunca ouvi falar, era uma utopia.
Por Serafim Marques *
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Num ano, enquanto a minha mãe foi à missa matinal de Natal, na sede da paróquia, distante cerca três quilómetros, eu e o meu irmão mais velho, talvez com 9 e 11 anos, pedimos aos três irmãos mais novos para colocarem os tamancos (calçado feito com uma base em madeira e o resto em couro) na lareira. Depois, antes deles acordarem, colocámos lá um ovo, pois outra coisa não havia no nosso pobre lar. E fomos acordá-los…. Todos os anos, havia na igreja paroquial da minha freguesia, à qual a minha aldeia pertencia, um presépio muito bonito, aos meus olhos de menino, no qual estava um menino que tinha nascido tão pobre quanto eu, e no dia do seu aniversário de nascimento (a 25 de Dezembro), celebrava-se esse acontecimento e o padre dava-nos a beijá-lo, nu como tinha nascido, tal como todos nós, residindo aí a única igualdade entre os pobres e os ricos.
Tal como Jesus Cristo, menino, entretanto feito homem, também eu fui “promovido”, prematuramente, a homem muito cedo e parti, deixando a minha aldeia beirã, onde nasci e cresci até aos onze anos, migrando para a cidade capital, que um familiar me trouxe, para trabalhar como marçano. Não parti para pregar a doutrina do bem, do amor e da fraternidade entre todos os seres humanos, como Jesus (ex-menino) o fez nas terras de Jerusalém. Trouxeram-me, porque eu, membro duma família de cinco irmãos, todos abaixo dos 13 anos, poderia sair para ganhar “uns tostões” para o agregado familiar, onde já não estava o meu pai José (curioso, tal como o pai de Cristo). E assim foi, com esse empurrão para fora do ninho pobre, que iniciei a minha luta contra a fatalidade de ter nascido pobre e pobre poderia vir a ser toda a vida, se cruzasse os braços e me resignasse à minha origem de família pobre, porque a doença nos tinha “roubado” o pai.
Se Cristo lutou contra os adversários, ao ponto de ser condenado e crucificado, também eu lutei contra muita adversidade e sofrimento, mas pé ante pé, fui vencendo cada etapa da vida e deixei de ser pobre, material e culturalmente falando. Fui, na escola (real), mas também na dureza da vida, aprendendo a ser homem e fui vencendo e atingi a “riqueza”, não a riqueza material de que se fala e que cega e leva à perdição de muita gente, mas uma certa forma de riqueza assente na realização pessoal e profissional, pelo que me posso considerar um privilegiado, colhendo os frutos de muita luta e sacrifícios. Mas valeu a pena ter lutado. Contudo, o desgaste dessa luta também apareceu para me transmitir a mensagem de quão frágil é esta nossa vida e, por isso, aprendi ainda mais os valores de que nós, os seres humanos, deveríamos praticar e ver nos outros, seres como nós, uns mais ricos e outros mais pobres, mas todos filhos de um Deus maior.
Olhando em redor, num horizonte global, fico triste por ver que, afinal, a doutrina de Cristo, que é (deveria ser) uma referência, mesmo para aqueles que não acreditam ou professam outras religiões, foi sendo substituída, nestes últimos tempos, com uma velocidade estonteante, por uma outra “religião” e que se chama consumismo. Esta, que em vez de pregar a fraternidade entre os humanos ou servindo-se desses sentimentos, faz apelo a outros valores que nos tornam, nós humanos, menos sensíveis aos problemas dos outros e nos deixam mais pobres. Contudo, materialmente falando, nunca a sociedade ocidental teve um nível de vida como o atual, apesar das nuvens negras que pairam sobre nós e torna o futuro negro e incerto para muita gente, principalmente para os mais desfavorecidos e das vítimas das guerras e das calamidades, cada vez mais frequentes e brutais, consequências da ambição desmedida dos “donos do mundo e das guerras” e da falta de visão e de vontade dos políticos e governantes mundiais.
O Natal (este “novo” Natal) cada vez começa mais cedo, por efeito também das ações e da força do Marketing, mas também porque muito cedo, crianças, jovens e adultos começam a desejar que esse Natal chegue depressa. Somos “bombardeados” por publicidade e eventos, cada vez mais hedonistas e descontextualizados da época, embora alguns a fazerem apelo aos sentimentos, mas que, paradoxalmente, outras ações de marketing os vão desfazendo, deixando-nos mais vazios interiormente.
É o materialismo explorador da época de natal e, em vez de Jesus, que está na sua origem, arranjou-se um “santo”, refiro-me ao Pai Natal, que leva as crianças a “adorá-lo”, por força das expectativas das imensas prendas que ele lhes “trará”, mais adequado à nova filosofia de vida das sociedades ricas da cultura “judaico-cristã, esta em profunda crise de valores humanos.
Mas que pobres que nós somos, apesar de cada vez mais estarmos rodeados de bens materiais (somos ricos, por isso?), muitos dos quais acabam por ser inutilidades e desperdícios lesivos para o meio ambiente! E no meio de tudo isto, há tanta hipocrisia e tanta frieza em torno dum período que deveria ser de doze meses em cada ano de fraternidade, de solidariedade e de paz e amor.
Paradoxalmente, comemoramos um aniversário e não convidamos o aniversariante e pensarmos na força e na atualidade das suas mensagens e, meditando nelas, podermos fazer uma autocrítica dos nossos (novos) “valores” e dos nossos comportamentos. Quantos de nós não nos sentimos tristes logo no dia 26 de Dezembro e à espera de um outro Natal? Sinto-me perdido neste tipo de Natal e fico triste, mais triste ainda neste período do que durante o resto do ano, porque talvez estejamos a ficar cada vez mais pobres e mais frios e isso não nos traz a felicidade e a (outra) riqueza. Há mais valores para alem do consumismo e do bem-estar material.
Festas, brinquedos, “rancho melhorado”, era uma utopia para mim e para milhões de portugueses pobres, mas ter saudades do “Natal de outros tempos” não significa ter saudades das dificuldades desse tempo, porque só se sentem saudades das coisas, dos momentos e das pessoas que são boas recordações, mas, de facto, esse natal não estava contaminado dos valores desta sociedade, dita moderna, na qual os valores humanos são “light” e o consumo desmesurado, para alguns, acaba por sugar os recursos que faltam a muitos milhões. E o que se ganhou nas relações humanas, incluindo os familiares?
Sabemos que é no período natalício que existem mais desavenças familiares e conjugais? Por que será? Porque, para muitos, as festas natalícias são uma chatice e com muito stress à mistura. Até as crianças, educadas por nós, se tornaram materialistas e nem uma saca de ofertas de brinquedos as sacia, porque, no íntimo, lhes falta o bem maior e que não se compra nas lojas: o amor. “Éramos pobres, mas éramos felizes”, frase repetida pelas gentes do “Natal de outros tempos”, de que não concordo. Escasseavam os “luxos”, mas sobrava a fraternidade familiar e de outros valores que se perderam. A mesa estava cheia – nem sempre de comida, porque os tempos eram outros, mas sim de pessoas e hoje muitas mesas estão repletas de comida, mas vazias de afetos. Para onde caminhamos, neste frenesim manipulador/dominador e no qual nos deixamos levar (voar) para logo cairmos desemparados e vazios? Meditemos nisso e pensemos se não caminhamos em sentido contrário à vida humana.
* Economista (Reformado).
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