“Não há milagres”

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Medicina geral.

Vivemos hoje em Portugal uma situação muito complexa. O SNS está a atingir o seu limite e os Cuidados de Saúde Primários (CSP) estão à beira da exaustão.

Por Nuno Jacinto *

É impossível os médicos de família estarem em dois sítios ao mesmo tempo: dada a quantidade de novas atividades que nos foram e são impostas, que acrescem a tudo o que já fazíamos anteriormente e que já esgotava as nossas capacidades, e considerando que os recursos humanos existentes são exatamente os mesmos (até menos, nalguns casos), alguma coisa tem de ficar para trás.

Os médicos de família têm trabalhado no combate à pandemia COVID-19 desde o seu início. Tem sido um trabalho árduo, exigente, desgastante. Mas tem sido um trabalho absolutamente decisivo e central: recordo que 95% dos casos suspeitos e doentes positivos são seguidos nos CSP, pelos médicos e enfermeiros de família.

Nunca baixámos os braços, nunca desistimos, nunca abandonámos os nossos doentes.
Não o fizemos e não o faremos. Contudo, perante o agravamento dos números a que temos assistido nos últimos dias, quer de novos casos quer de óbitos, é inevitável encararmos o futuro próximo com grande preocupação. Os profissionais de saúde em geral, e os médicos de família em particular, estão esgotados e há muito ultrapassaram aquele que pensavam ser o seu limite. É impossível pedir-lhes mais, é impossível exigir-lhes que trabalhem mais horas ou que realizem mais tarefas.

Esta pandemia, sobretudo nos meses em que houve uma relativa acalmia, deveria ter tido originado um forte e marcado investimento no SNS. Infelizmente tal não aconteceu. Mantemos graves falhas a nível dos recursos materiais e, sobretudo, dos recursos humanos, que se tentam colmatar em cima do acontecimento, de forma pouco preparada e estruturada e muitas vezes sem quaisquer efeitos práticos.

Não tenhamos ilusões: se os médicos de família estão cada vez mais alocados a tarefas relacionadas com a pandemia, é humanamente impossível conseguir prestar os cuidados que os utentes e doentes não COVID continuam a necessitar.

Repito: não conseguimos estar em dois sítios ao mesmo tempo, não conseguimos fazer com que os nossos dias tenham mais horas. Há meses que temos vindo a alertar para esta situação e para os riscos de um colapso dos Cuidados de Saúde Primários que, infelizmente, vemos cada vez mais próximo. Em tom de brincadeira, há alguns meses dizíamos entre colegas que o passo final de qualquer fluxograma seria a invocação da ajuda divina. Crentes ou não, os médicos de família receiam que estejamos rapidamente a atingir esse ponto.

Continuamos imersos em tarefas burocráticas e administrativas, que cada vez nos consomem mais tempo. Fizemos um enorme esforço para retomar e recuperar a atividade assistencial programada, apesar de tantas vezes nos depararmos com limitações do espaço físico das próprias unidades ou com graves falhas de recursos humanos.

E há coisas tão simples que podiam e deviam ter sido feitas, começando pela contratação de diversos profissionais que tanta falta nos fazem – seguranças para ajudar na triagem e orientação dos doentes à entrada das unidades, telefonistas para dar a resposta às múltiplas chamadas que os doentes efetuam e que não são atendidas, assistentes técnicos que faltam em tantas unidades e que são absolutamente cruciais para a atividade médicos e enfermeiros.

Os médicos de enfermeiros de família foram e continuam a ser alocados a ADR’s, ZCAP’s, EARS’ e outras estruturas criadas no âmbito da pandemia. Apesar de algumas bem-sucedidas experiências nalguns locais, nunca se criaram de forma generalizada equipas específicas para estas tarefas, algo que podia e deveria ter sido pensado e planeado de forma atempada e organizada.

Para agravar todo este quadro, acresce que os profissionais dos cuidados primários também são humanos e por isso também acabam por ser afetados pela pandemia. São cada vez mais frequentes os casos de profissionais infetados ou em isolamento profilático, o que compromete ainda mais a assistência quer aos doentes COVID quer aos não COVID. Bem sabemos que vivemos tempos excecionais.

Que fomos apanhados de forma súbita por esta situação e para a qual, no imediato, ninguém poderia estar preparado. Mas após este impacto inicial era necessário planear o futuro a médio prazo. Ainda o podemos fazer, mas cada vez temos menos tempo para tal. Como tenho dito e escrito múltiplas vezes, precisamos que nos deixem ser médicos de família por inteiro e não apenas médicos da pandemia.

Os nossos doentes merecem que assim seja. Quando penso nesta situação, recordo-me do discurso de Santo António aos peixes: sentimos que estamos a falar no vazio, sem que ninguém nos ouça (ou queira ouvir). O grande problema é que, apesar das suas múltiplas e únicas capacidades, os médicos de família não são omnipresentes nem conseguem fazer milagres.

* Presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Artigo publicado originalmente no site Healthnews.

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