Na senda da procura de minimizar a importância dos Bombeiros

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Foto divulgada no site da Liga dos Bombeiros Portugueses.
Natalim3

A 30 de dezembro de 2022, pelo Decreto-Lei n.º 90-A/2022 foi aprovado um novo modelo de Sistema Integrado de Operações de Proteção e Socorro (SIOPS), criado em 2006 e alterado em 2011 e 2013, que veio, potencialmente, colocar os Bombeiros sob normas de gestão operacional, que afetam a sua independência operacional e podem comprometer as suas missões.

Por António Nunes *

Senão vejamos. No capítulo do Sistema de Gestão de Operações, no seu n.º 2 do artigo 7.º, afirma-se que a nomeação para o exercício das funções previstas devem ter em conta a adequação técnica dos nomeados, “de acordo com os mecanismos de qualificação e certificação existentes” e a capacidade operacional das entidades integrantes do SIOPS presentes no Teatro de Operações (TO), que como bem sabemos, em muitos casos e, em particular, nos incêndios florestais, vão muito para além dos Bombeiros ou mesmo da Proteção Civil ou ANEPC. Será que se entende que num Teatro de Operações onde mais de 80 % dos recursos humanos e materiais são dos Bombeiros, os mesmos devem ser comandados por uma agência de índole florestal? Será isso compatível com a experiência e capacidade de combate dos Bombeiros? Será que o empenhamento dessas mulheres e homens desde há longos anos está a ser reconhecido e considerado?

Numa leitura clara deste artigo entende-se que se procura encontrar no âmbito das agências participantes nas operações de prevenção e socorro, capacidades expressas para assumir a gestão das operações, podendo prescindir dos elementos de comando dos Bombeiros, sendo que não havendo critérios fixados, nem quais as certificações a que se refere, deixará ao livre-arbítrio da ANEPC o que fazer. Parece-nos uma desconsideração aos Bombeiros e uma afronta ao modelo de posto de comando operacional, com forte tradição na organização dos bombeiros e fundamental para a articulação dos meios e das técnicas para o socorro, em todas as situações a que são chamados ou mobilizados.

Como foi possível incluir tal norma sem um profundo debate do seio dos Bombeiros e dos seus representantes? Com potenciais implicações de conflitualidade, não teria sido mais avisado, que a nova versão que, regulamenta o SIOPS, promulgada no último dia do ano de 2022, só para satisfazer a vontade de implementar uma nova estrutura na ANEPC, tivesse sido objeto de discussão pública e obtido parecer da Comissão Nacional de Proteção Civil? Será que os Bombeiros, segundo alguns, se têm de subordinar à ANEPC e agora também a uma agência de índole florestal, caso haja essa decisão por parte da ANEPC ou de outra entidade, no caso do risco florestal?

Mas, como se não bastasse, a função de Comandante das Operações de Socorro (COS), de acordo com alínea d), do artigo 9.º, um comandante sub-regional de emergência e proteção civil (funcionário da ANEPC), pode designar um comandante de um corpo de bombeiros que entenda, sem que haja critérios fixados, quando percecionar que uma situação o justifica. Com esta norma contraria-se, frontalmente, diversas normas estabelecidas no Decreto-Lei nº 247/2007, de 27 de junho, na sua versão atual, quanto à responsabilidade de cada comandante na sua Área de Atuação (AA), espaço exclusivo da sua tutela direta e com fortes responsabilidades, até criminais. O respeito pela AA de um Corpo de Bombeiros (CB) assume uma absoluta relevância para a responsabilização da função de comando de um CB. Deixando à livre iniciativa da ANEPC, que poderá aplicar critérios de duvidosa legalidade, tende a criar uma interrogação permanente sobre o que se passará em cada resolução de uma emergência. É do ponto de vista da ética e do respeito institucional, inaceitável.

Por outro lado, e na senda da procura de minimizar a importância dos Bombeiros, o número 3, do artigo 9.º estabelece que os comandantes da ANEPC “podem assumir a função de COS em qualquer fase da operação”, fazendo cair por terra a evolução prevista no número 2 do mesmo artigo. Deixar à livre decisão de uma estrutura da ANEPC o poder de determinar quando e como assumem o COS, promove a incerteza de princípios que, desde há muitos anos, estava estabelecido, ou seja, que os Bombeiros, face ao número de meios que utilizam e à multiplicidade das suas capacidades devem assumir a função de COS num sistema que a ANEPC quer dispor como seu, devendo os comandantes de bombeiros responder perante si. Os Bombeiros não são bombeiros da proteção civil, como alguém pretende. Os bombeiros são das Entidades Detentoras de Corpos de Bombeiros (EDCB) ou seja, de uma Câmara Municipal, de uma Associação Humanitária ou de uma Empresa. Haja respeito pelos nossos Bombeiros e acima de tudo pelos cidadãos que criaram e constituem as nossas Associações Humanitárias!

Refira-se, ainda, que ao retirar, num passado recente, a autonomia de comando operacional aos Bombeiros, justificando que a ANEPC deve liderar o princípio de unidade de comando, sem respeito pela autonomia de gestão e organização dos CB, não garante um tratamento equilibrado e equitativo entre os diferentes agentes de proteção civil, que vêm a sua autonomia completamente respeitada. Os Bombeiros pelas provas dadas ao longo dos anos de capacidade operacional, sem qualquer tutela na execução das suas missões, merecem muito mais e muito diferente, respeitando-se a sua autonomia técnica e capacidade de resolver as ações de socorro para que são chamados.

Já no que diz respeito às estruturas de coordenação assiste-se, nesse mesmo diploma, a uma completa e desnecessária afronta aos Bombeiros quando nos centros de coordenação operacional de nível nacional, regional e sub-regional, não conferiram a representação efetiva aos Bombeiros, antes remetendo essa possibilidade para “Outras entidades cuja participação, em função da ocorrência, seja requerida pelo coordenador …”. Incompreensível, porque os Bombeiros, através dos Corpos de Bombeiros são um imprescindível e insubstituível agente de proteção civil e porque temos dificuldade em encontrar ocorrências sem a participação dos bombeiros. Como exemplo bastante da sua participação bastará comparar os números de elementos de cada Agência no combate aos incêndios florestais e o dos Bombeiros em todas as fases do DECIR2023 ou de anos anteriores.

Não haverá situações de mobilização de meios de intervenção de combate aos incêndios florestais que não envolvam Bombeiros. Muito raramente conseguimos encontrar situações operacionais onde não estejam presentes, sendo até credível, poder afirmar-se, que os meios dos bombeiros estarão sempre em maioria ou em exclusividade. Fala-se muito em sucesso no ataque inicial, esquecendo, porventura propositadamente, que durante o período noturno a mobilização é feita, numa larguíssima maioria dos casos, aos CB, que resolvem as situações, contribuindo para a estatística global. Temos de ser mais analíticos e sérios para não diluir num todo, uma parte substancial do trabalho de combate aos incêndios florestais. Não vale tudo para se encontrarem justificações para colocar os Bombeiros numa segunda linha de importância. Já basta a descaracterização da figura do bombeiro, transformado, desde há alguns anos, em operacional, diluindo-se a parte substantiva, com a parte supletiva, deixando-se de revelar a importância dos bombeiros nas ocorrências.

E, por fim, o que dizer do Anexo I que na sua alínea c) contraria a orgânica imposta pela ANEPC quanto aos comandos sub-regionais, com a criação de subunidades criadas pelo Despacho n.º 14837-A/2022. Para já, não se referir que a nomeação de oficiais bombeiros para 2.º comandantes sub-regionais (em regime de substituição, aguardando-se a publicação dos concursos), nos deixam muitas dúvidas, baseando-se num despacho de muita duvidosa legalidade interpretativa (Despacho nº 5080/2019 de 22 de maio), que a seu tempo será dirimido em reuniões ou nas entidades competentes. Confundir, ou pretender fazer confundir, o exercício contínuo de funções de comando, como as exercidas pelos elementos de comando dos CB, com atribuições esporádicas de possíveis atividades de comandamento de unidades parcelares e, com isso, procurar uma equivalência automática, revela pouco sentido de análise e deixa no ar, uma solução coxa que procura colmatar a eventual falta de elementos de comando de bombeiros disponíveis para o desempenho de funções na ANEPC. Não é aceitável e estamos certos de que a muito curto prazo tomaremos todas as medidas para alterar tal situação, caso se continue a verificar.

* Presidente da Liga dos Bombeiros Portugueses. Resumo de artigo publicado no site da LBP.

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