Um Estado moderno deverá ter como desígnio prioritário aproximar os serviços e as respostas das pessoas num contexto de proximidade, transparência e reforçado escrutínio. Esta ideia de Estado é, sem dúvida, aquela que melhor serve os interesses dos cidadãos e melhor contribui para o exercício de uma democracia de qualidade. A transformação das sociedades, nas últimas décadas, contribuiu para um novo modelo de relações entre os diferentes agentes sociais e políticos.
Por Adalberto Campos Fernandes *
Para além do valor acrescido da representatividade eleitoral emergiram novas formas de organização e de intervenção social e comunitária. A evolução demográfica determinou uma reconfiguração do tecido social muito marcada pelo envelhecimento e pela longevidade, mas também pelo aumento de carga de doença, da dependência e do isolamento.
A descentralização do Estado corresponde a uma tendência natural registada na grande maioria dos países com particular destaque naqueles com melhores níveis de desenvolvimento e melhor desempenho da Administração pública. Na prática, a descentralização torna mais eficiente a ação política e administrativa permitindo simplificar processos e procedimentos, potenciar a coordenação entre recursos e diminuir a entropia burocrática das estruturas centrais.
Na Europa e em Portugal são múltiplas as áreas de intervenção do Estado que beneficiam deste tipo de transferência com avaliação objetiva de desempenho que se traduz em resultados económicos, financeiros, ambientais e sociais muito positivos.
Em grande medida, podemos referir que a descentralização representa um poderoso instrumento para a coesão territorial e o desenvolvimento sustentável. No caso específico da saúde existe evidência robusta que demonstra que a proximidade dos serviços e cuidados de saúde melhora a sua eficiência contribuindo, igualmente, para a efetividade global De conjunto do sistema de saúde.
A transferência de responsabilidades, na área da saúde, para os municípios deverá ser sempre acompanhada dos recursos adequados e ter um caráter progressivo e gradual. Para além dos aspetos estritamente operacionais como a gestão, conservação e manutenção do edificados, das infraestruturas e dos transportes existe um largo espaço de intervenção colaborativa que importa desenvolver. Os ganhos de eficiência resultantes da melhoria do desempenho operacional poderão ser reorientados para medidas de promoção da saúde e de intervenção comunitária destinada à melhoria do estado de saúde das populações.
A expressão da Organização Mundial da Saúde: «pensar global e agir local» ganha pertinência no domínio das políticas de saúde na medida em que a natureza do território e das comunidades requer, muitas vezes, adaptação dos serviços e das respostas tendo em vista o cumprimento das estratégias nacionais. As decisões tomadas no perímetro local tendem a ser mais racionais e específicas permitindo, igualmente, uma efetiva participação das comunidades e dos indivíduos. Desde as questões relacionadas com a distribuição dos equipamentos e infraestruturas, passando pelo funcionamento e adaptabilidade às necessidades locais, encontra-se um conjunto muito relevante de oportunidades para alinhar os recursos e as respostas com as necessidades.
A descentralização em saúde pode, igualmente, contribuir para melhorar a equidade intra e intermunicipal atenuando as desigualdades e as diferenças potencialmente evitáveis. Em Portugal, a experiência de intervenção dos municípios, aquando da crise associada à Covid-19, demonstrou o papel insubstituível que desempenharam na resposta à pandemia. A emergência de saúde pública pôs à prova os mecanismos de resposta e, em particular, a efectividade resultante da agilidade e da compreensão exata do perfil de necessidades em cada momento e em cada local.
A crise pandémica tornou clara a importância do poder local, da ação direta, da articulação entre setores e do envolvimento dos diferentes agentes e entidades na convergência necessária para a efetividade das respostas.
Desde a implementação das medidas gerais de saúde pública, até ao desenvolvimento e aplicação das medidas de monitorização e vigilância, passando, na última fase, pelo desenho, coordenação de meios na distribuição de vacinas e no apoio à respetiva administração pelos profissionais de saúde.
A intervenção municipal contribuiu, igualmente, para pôr em destaque a importância estratégica dos cuidados de saúde de proximidade, seja no domínio estrito da prestação, seja, principalmente, na promoção e educação para a saúde e no incremento da literacia individual e comunitária relativamente às questões da saúde e da qualidade de vida. Os resultados obtidos no combate à pandemia deveram-se, em grande parte, à mobilização do nível local e ao empenhamento eficaz dos municípios.
A reforma da Administração pública e, em particular, a reforma do sistema de saúde dependem da capacidade do Estado em se tornar menos centrípeto, centralista e monopolizador na gestão e na utilização dos recursos disponíveis. Um dos aspetos mais sensíveis que importa acautelar, tanto no processo legislativo como na fase de implementação, tem que ver com as desigualdades potenciais entre municípios do interior e do litoral e, com particular enfoque, nos designados territórios de baixa densidade. Neste enquadramento, será indispensável acautelar os riscos de descontinuidade e de desequilíbrio na transferência de recursos.
Ao longo das últimas décadas, Portugal apostou num modelo de desconcentração regional o qual se traduziu, na década de 80, na saúde, na criação das Administrações Regionais de Saúde. Desde então foram criadas diversas entidades públicas empresariais com autonomia administrativa e financeira a nível central — Administração Central do Sistema de Saúde e Serviços Partilhados do Ministério da Saúde, e a nível regional e local — Unidades Locais de Saúde, Centros Hospitalares e Hospitais e outras entidades desprovidas dessa autonomia como os ACES.
Na prática, o sistema de saúde foi-se estruturando de um modo incoerente, com diversas sobreposições e conflitos de atribuições e competências a que se veio a juntar, mais recentemente, a nova Direção Executiva do SNS. Estamos perante um mosaico complexo, ineficiente, gerador de duplicações e entropia administrativa e a uma excessiva carga burocrática. A revisão do edifício administrativo do sistema de saúde implica a dimensão operacional e territorial pelo que o processo de descentralização se constitui numa oportunidade estratégica de melhoria global. O seu desenvolvimento deverá ser feito por etapas com progressiva consolidação mediante um exercício de monitorização e avaliação contínuas.
A presente obra percorre com eloquente lucidez os pontos essenciais desta transformação desde a indispensável reflexão sobre o papel dos municípios no combate à pandemia, às lições retiradas da articulação entre os diferentes níveis de intervenção incluindo uma pertinente análise sobre os principais desafios do futuro.
A leitura deste livro contribuirá decisivamente para uma melhor compreensão do que está em causa neste impulso legislativo de reforma da administração. Uma descentralização, em saúde, bem-sucedida transformará o sistema de saúde na sua dimensão técnica, mas, sobretudo, na reorientação do seu papel social.
* Ex-ministro da Saúde. Docente da Escola Nacional de Saúde Pública. Prefácio do livro “Municípios e Saúde – entre as lições da Covid-19 e os desafios da descentralização”, uma obra coordenada por Luís Filipe Mota Almeida (Investigador associado no Centro de Investigação de Direito Público da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), André Dias Pereira (Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra), e Manuel Ferreira Ramos (Coordenador do Centro de Valorização de Eleitos Locais)
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