Muito se tem escrito sobre a percentagem (14,4%) de profissionais mulheres na área de Tecnologias de Informação em Portugal apurada pela Eurostat. Promovem-se grupos e eventos sobre a divisa de ‘woman/ girls in tech’ por todas as empresas para reforçar a representatividade do ecossistema tecnológico, ao mesmo tempo que se tentam desconstruir os “gender roles”. Contudo, é possível observar (nesses mesmos eventos) que por vezes se intensifica acriticamente uma dicotomia de género “mulher/ homem”.
Por Lia Raquel Neves e Teresa Forte *
É de conhecimento generalizado que este binarismo de género reforça a desigualdade e não a diversidade, e raramente promove dois dos principais aspetos responsáveis pela inclusão das mulheres. São eles: o(s) feminismo(s) por um lado, educação precoce (‘early childhood education’) por outro.
Um outro aspeto que tem ficado à margem de uma justa discussão reside no modo como se define “mulheres em tecnologia”. Trabalhar em tecnologia significa (em sentido amplo) que trabalha numa empresa de tecnologia, ter um ‘technical role’ numa empresa de tecnologia significa que tem conhecimentos técnicos e experiência para desenvolver, ou realizar decisões técnicas. As estatísticas da Eurostat são no âmbito deste ‘technical role’, ou seja, baseiam-se em mulheres na área de Tecnologias de Informação que partem de formação base em STEM (Ciências, Tecnologia, Engenharia e Matemática). Mas porque não temos dados de quantas mulheres integram profissionalmente o sector tecnológico com formação (p. ex.) em gestão, ciências sociais, artes e humanidades? Se considera que o ‘background’ não é relevante, dado que temos (p. ex.) cada vez mais mulheres programadoras que não partem das áreas STEM, não seria importante – estatisticamente falando – apurar o percurso das mesmas pelo necessário reconhecimento e representatividade?
Anitab.org, uma comunidade digital para mulheres em tecnologia fundada pela programadora Anita Borg, em 1987, e hoje presente em mais de 50 países, propõe que se considerem todas as ocupações técnicas de tecnologias de computação e informação bem como aquelas que requerem um outro conhecimento técnico especializado e qualquer cargo de gestão, direção e executivo que envolva a supervisão de qualquer trabalho técnicos. Esta noção, mais inclusiva do que aquela circunscrita à formação em STEM, possibilita ainda considerar mulheres em cargos de poder e liderança, especialmente neste sector da indústria que ainda obstinadamente desigual.
Regra geral, as estatísticas sobre questões de género, representatividade e acesso falam da evolução e do caminho que ainda é preciso percorrer, no entanto, é necessária uma reflexão mais a montante para que este caminho não tenha demasiadas vieses. Bem no topo da hierarquia de causas desta desigualdade, estão estereótipos reforçados em experiências formativas e de educação. Dizia a programadora Grace Hopper, ainda na década de 70, que a programação seria algo natural para as mulheres por implicar paciência e capacidade para lidar com detalhes… tal como planear um jantar.
Esta nota sarcástica enfatiza que a capacidade “natural” é, na verdade, mais hábito ou prática do que predisposição. Há dois fenómenos, de aprendizagem que talvez clarifiquem a interpretação das estatísticas sobre mulheres em tecnologia. O primeiro, a ameaça de estereótipo, prediz que quando um grupo é alvo de um estereótipo negativo numa determinada área ou atividade, os seus membros tenderão a sentir mais ansiedade e pressão no desempenho e, subsequentemente, a apresentar piores resultados. Se as competências de raciocínio lógico-matemático ou espacial são mais associadas e reforçadas nos homens, de modo binário, tal poderá afetar o gosto por ou escolha de áreas ou profissões que se baseiem nestas competências.
Ora, na contínua definição identitária de gostos e experiências que é o crescimento, este impacto pode ser atenuado se os contextos educativos das crianças e jovens desafiarem esta ideia. Isto leva-nos ao segundo fenómeno, cunhado de efeito Pigmalião, que descreve como as expectativas positivas ou negativas de figuras de referência como os professores influenciam significativamente os resultados dos alunos numa relação linear. Podemos facilmente transpor estes dois processos para contextos profissionais, se pensarmos em colegas a perpetuar estes mesmos estereótipos com que cresceram, ou em chefes a “esperar posturas”, ou resultados diferenciados por género, o que não é incomum.
Aumentar a representatividade é um objetivo fundamental, mas se não se articular a discussão com estas noções veladas, quem acede continuará a ser vista como exceção, mantendo-se esta barreira sistémica à confiança e definição identitária das mulheres em áreas de tecnologia.
* Investigadoras da Universidade de Coimbra. Texto disponibilizado por Associação Portuguesa de Imprensa.
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