A moeda é um objeto cada vez mais relegado ao desuso. Como um artefacto de um tempo remoto que sobrevive apenas por pura teimosia. Claro está que já todos notámos esse fenómeno. Mas, como sempre, apenas nos consciencializamos da verdadeira dimensão da coisa quando temos a experiência de.
Por O VAZ *
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No meu caso, ocorreu quando estava às compras num centro comercial e reparei nos carrinhos de compras. Habitualmente, acorrentados uns aos outros, à espera de uma moeda de 50 cêntimos ou 1€ para serem libertados. No entanto, para minha surpresa, nenhum deles estava acorrentado. Sim, até os carrinhos parecem ter-se rendido à moeda digital, livres de qualquer corrente, pois já ninguém carrega uma moeda para os desbloquear.
Posso imaginar como tudo isto começou: os seguranças, cansados de emprestar aquelas moedas de plástico vermelhas do Continente, desanimaram com o eterno desgaste de as ver partir sem retorno. Em consequência, o próprio Continente viu-se a braços com o prejuízo de uma indústria de moeda plástica e deixou de comprá-las. As fábricas, por sua vez, faliram, forçadas ao encerramento. E porquê? PORQUÊ? Porque as pessoas, como seres modernos e digitais, deixaram de andar com moedas nos bolsos, e, por isso, levaram centenas de pessoas ao desemprego. Enfim.
Quem mais sofre com esta transição da moeda física para a digital são, inevitavelmente, os sem-abrigo. Estes pobres coitados, já desafortunados por natureza, não andam com sorte alguma. Alguns, mais alienados, perdidos nas dobras da atualidade, devem até acreditar que o país passa por uma severa crise financeira provocada por um tal de Marcelo que, imaginam, ser o primeiro-ministro do governo do PCP. Na sua visão distorcida, já ninguém lhes oferece moedas porque andam todos à rasca de dinheiro. E, bem vistas as coisas, talvez eles não estejam assim tão mal financeiramente em comparação ao resto do país.
Não obstante, outros adaptaram-se à moeda digital. Ao ouvir a desculpa “não tenho moedas”, retorquem com a desarmante: “Mas eu tenho MBWay.” Estes são, de facto, os mais desafiantes. Obrigam-nos a elaborar uma desculpa mais engenhosa do que o tradicional “não tenho moedas”. Levam-nos a puxar pela cabeça a uma quarta-feira à tarde junto ao metro do Campo Grande. Obrigam-nos a inventar desculpas como “não tenho net”, “estou com pouco saldo” ou mesmo a infame “o meu cão comeu-me o MBWay”.
Por um lado, sinto certa nostalgia por este aparente fim da moeda. Mas, por outro, anseio pelo dia em que aqueles funcionários de cafés que recusam pagamentos inferiores a 5 euros em multibanco sejam gentilmente colhidos por uma retroescavadora. Pois é: embora a moeda esteja a desaparecer, penso que não devemos abandoná-la de ânimo leve.
Uma das razões é a sua iconografia – os cartões de crédito nunca terão os símbolos europeus inscritos nas suas costas. Não se vê um selo real de Afonso Henriques, um monarca Espanhol, uma águia federal alemã ou uma obra-prima de Da Vinci nas costas de um cartão de plástico.
Com a moeda, também desapareceria a essência dos matraquilhos. O desgosto que seria um pagamento em contactless ao invés dos 50 cêntimos encravados na ranhura das moedas. E o sofá perderia o seu papel como porquinho mealheiro, a que recorremos fielmente quando nos falta uma moeda para os matrecos. Ora aí está.
Dentro de algumas gerações, as crianças não perguntarão quanto valia o escudo, mas sim “afinal, qual era a diferença entre as moedas pretas e amarelas?” Parece que somos a última geração da humanidade a praticar a troca física de moedas –o “vendo-te isto, tu dás-me aquilo, e eu devolvo-te o troco”. Moeda para cá, moeda para lá. Algo que existe há séculos, desde o tempo das pirâmides, valha-nos Deus.
Seria como se, de um momento para o outro, as próprias pirâmides deixassem de existir – um marco que persistiu por milénios, a transformar-se numa simples nota de rodapé na História. Ou, neste caso, num cartão rodapé.
* Cinesta. [email protected]
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