Mobilidade / Transportes: As vítimas mortais não podem ser as culpadas de tudo!

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Trotinetes.

Pouco se sabe, como aliás é habitual, sobre o atropelamento que vitimou duas pessoas que se deslocavam de trotineta numa rua do Porto no primeiro dia de 2023, tendo uma delas morrido.

Por Luís Carvalho *

Foquemo-nos, pois, no pouco que se sabe. Desde logo todos sabemos que a Lusa titulou a notícia de uma forma enganosa. Conseguiu omitir que o atropelamento tinha sido causado por um automóvel ao escrever “Um morto e um ferido grave em atropelamento com duas trotinetas no Porto”. Quem lesse apenas o título pensaria que tinham sido as trotinetas a atropelar peões. Podemos admitir que o jornalista em causa tenha achado que ao usar a palavra “atropelamento” tal pressupunha um automóvel envolvido. Mas, para isso, convinha ter escrito “(…) atropelamento ‘de’ duas trotinetas(…)” e não “com”. A pressão nas redes sociais foi tal que a Lusa, e vários órgãos de comunicação social, tiveram, ao longo do dia, de retificar o título da notícia passando a falar no envolvimento de um “carro”.

Já a TSF foi mais longe e ligou esta notícia a uma outra, de 30 de março, em que se falava sobre a “má utilização de trotinetas” como fator de insegurança. A partir daqui, e como é habitual, os comentários do “tuga” são os habituais, culpabilizando as vítimas. Não são, aliás, comentários muito diferentes daqueles que todos vimos aquando de mais um homicídio cobarde de uma mulher às mãos de um companheiro possessivo e violento. A culpa é das vítimas.

O que também sabemos é que esta morte até pode ter resultado da incúria de quem conduzia as trotinetas, mas o trágico fim é causado, manifestamente, pela desproporção entre quem circulava num velocípede e quem circulava num automóvel. Continuamos a ter como bitola para a prudência no uso de veículos o nível de vulnerabilidade a que se está exposto e não a desproporção do tipo de mobilidades. Esta característica está, há muito, impregnada no nosso modo de vida, a começar pela lei que obriga, por exemplo, os peões a usarem de todas as cautelas que não se impõem a quem usa veículos automóveis mesmo que dentro de localidades.

Temos, também, toda uma infraestrutura citadina pensada para quem usa automóveis sendo todas as políticas de mobilidade definidas em função disso.

Finalmente, se temos políticas de contenção do risco no caso de trotinetas ou bicicletas elétricas, desde logo limitadas na sua velocidade máxima, a verdade é que fomos e somos laxistas na forma como permitimos que a indústria automóvel defina as características dos seus veículos em função dos seus interesses e não em função de fatores elementares de maior segurança, menor poluição e melhor eficiência energética. É, aliás, paradoxal, que a transição para o carro elétrico se esteja a fazer repetindo os erros dos carros a combustão, mantendo níveis absurdos de ineficiência energética, apostando na dimensão e no peso, na velocidade e na aceleração.

Partindo do pressuposto que todos os veículos, e até os peões, circulam sem cumprirem as regras mais elementares de segurança rodoviária, é estranho que alguns sejam tão exigentes, por exemplo, com a condução de trotinetas mas tão pouco exigentes com a condução de carros e motociclos que circulam dentro das localidades como se circulassem numa autoestrada ou mesmo, muitos, num autódromo.

Passar a ponderar a desproporção entre veículos envolvidos num sinistro rodoviário, atribuindo uma maior responsabilidade, a todos os níveis, a quem se deslocava no veículo mais perigoso, deveria ser uma prioridade. Lembremos que a Estratégia Nacional para a Mobilidade Ativa Ciclável 2020-2030 prevê que, até 2025, se faça uma discussão, de forma participada, com o apoio de juristas e instituições públicas e privadas, para a conceção de uma proposta que garanta mais condições de segurança para ciclistas, levando em consideração a maior vulnerabilidade dos modos ativos de transporte. Infelizmente, esta como muitas outras medidas, permanecem apenas no papel.

* Administrador do grupo no Facebook ‘A bicicleta como meio de transporte’.

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