No começo do período de maior empenhamento de meios, denominado ‘nível Delta’, que decorre entre 1 de julho e 30 de setembro, a ZERO aproveita o momento para efetuar uma avaliação à informação disponibilizada no recém divulgado relatório anual de atividades do Sistema de Gestão Integrada de Fogos Rurais (SGIFR), relativo ao ano de 2023.
Por ZERO – Associação Sistema Terrestre Sustentável
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Como primeira nota, constata-se que o número de incêndios diminuiu em relação ao ano anterior – 7.523 em 2023 face aos 10.389 de 2022 e aos 8.223 de 2021 – e houve também uma menor área ardida – totalizando 34.509 hectares, sendo que no ano de 2022 chegou-se aos 110.097 ha, por contraste com o ano de 2021 em que a área ardida só foi de 28.415 ha – ao que se junta uma tendência de redução na média de taxa de ignições nos dias de elevado perigo de incêndio no período 2018 a 2023 (menos 53% quando comparada com o período de 2001 a 2017), resultados que são obviamente muito animadores. No entanto, a verdade é que estes números muito positivos podem transmitir-nos uma falsa sensação de que está a acontecer uma modificação dos comportamentos face ao fogo e que a desejável mudança estrutural nas políticas públicas com impacto nos territórios está a ocorrer com a celeridade necessária.
Problema social do incendiarismo continua a ser desvalorizado
Ainda que se reconheça o esforço da AGIF – Agência para a Gestão Integrada dos Fogos Rurais em monitorizar e avaliar o desempenho de todos os intervenientes no que aos incêndios diz respeito, não só se verifica que existem muitas medidas previstas de enorme importância que estão claramente a “marcar passo”, como também, se olharmos mais de perto para as ignições, para a área ardida e para o número de crimes registados, se comprova que os fogos rurais são um problema social que continua longe de estar resolvido.
Com efeito, ainda que nos últimos três anos (2021-2023) o incendiarismo represente 19% do total dos incêndios registados, quando analisamos o seu impacte na área ardida resultante de incêndios de maior dimensão (área ardida igual ou superior a 50 ha, a qual representa 83% do total da área afetada pelos incêndios no mesmo período, ou seja, 143.410 ha de um total de 173.021 ha), verifica-se que esta causa passa a ser responsável por 62% da área ardida (89.580 ha) e é geradora de impactos muito superiores às outras causas de incêndios. Ou seja, para a ZERO, tanto a nível social, como no seio dos decisores públicos, parece continuar a existir uma certa desvalorização do papel do incendiarismo na perpetuação do flagelo dos fogos, apesar de este constituir um crime previsto no código penal (Artigo 274.º – Incêndio Florestal), o qual prevê penas de prisão até 8 anos, que se forem de especial gravidade poderão chegar aos 12 anos.
Por isso, e mesmo que não exista a necessidade de alterar a moldura penal existente, dificilmente se compreende a gritante falta de empenho na monitorização e no acompanhamento da reincidência, assim como ao nível da reinserção do incendiários no pós cumprimento de penas, e muito menos se compreende o desprezo que se verifica pela necessidade urgente de criação de um programa para apoio e acompanhamento pela prática de fogo posto no âmbito da saúde mental, associado ou não a comportamentos aditivos e dependências.
Ainda neste contexto, importa não esquecer que a negligência, também ela um crime, continua a ser muitíssimo tolerada entre nós, como se comportamentos imprudentes, se bem que com menos impacto na área ardida, como o lançamento de foguetes (58 ocorrências e 31 ha ardidos), a realização de fogueiras (201 ocorrências no período de 2021-2023), a queima de lixo (334 ignições e 238 ha queimados), fumar na proximidade de espaços suscetíveis de arderem (702 ocorrências e 602 ha ardidos) ou a queima de sobrantes agrícolas e florestais (3051 ocorrências e 7.457 ha) fossem “normais” num contexto em que já foram gastos milhões de euros na sensibilização dos cidadãos para que sejam mais responsáveis.
SIGFR parece estar a abrandar ritmo de implementação de forma preocupante
Como se não bastasse este cenário, em que os comportamentos pouco parecem estar a mudar, ao nível do ritmo de implementação das mudanças estruturais evidenciaram-se neste período grandes dificuldades de operacionalização em algumas áreas críticas, sendo que no próprio relatório é reconhecido que com o atual ritmo de implementação do Plano Nacional de Ação e do SGIFR não será possível atingir as metas previstas para 2030. Assim, no que respeita ao financiamento são incompreensíveis as dificuldades registadas no âmbito do Programa de Financiamento Multifundos o qual ainda não foi constituído, com a agravante de nem sequer terem sido disponibilizados os dados de investimento na floresta neste relatório. Situação semelhante está a ocorrer igualmente com as medidas para aumentar a remuneração dos proprietários florestais ou a definição de medidas fiscais ou financeiras que já deveriam estar operacionalizadas, nomeadamente a contribuição especial para a conservação dos recursos florestais e a criação de Planos Poupança Florestal.
No que concerne à remuneração dos serviços de ecossistemas, o relatório continua a não nos dar notícias positivas, sendo que não é possível aferir a área abrangida por este mecanismo e também não é possível obter informação sobre a percentagem de proprietários que prestam serviços dos ecossistemas e que são remunerados por isso.
Já em relação ao fogo controlado, sem que se encontre qualquer explicação plausível, continua em incumprimento o objetivo anual de alcançar a área de 3 500 ha intervencionada, visto que em 2023 foram geridos apenas 2.666 ha.
O mesmo se pode afirmar em relação ao objetivo de alterar o processo de eliminação e promover o reaproveitamento de sobrantes, sendo de lamentar que o concurso de apoio à criação de ecopontos florestais ou de compostagem lançado pelo Fundo Ambiental continue neste momento sem relatório de atribuição de fundos aos potenciais beneficiários. Ainda para mais quando no nosso país se verifica uma dependência excessiva do uso do fogo para proceder à eliminação dos sobrantes, quando a compostagem é a solução ambiental mais sustentável, situação que se comprova com o número de pedidos de autorização para a realização de queimas e queimadas junto do ICNF que em 2023 chegou aos 1 132 226. É igualmente de lamentar que não existam dados sobre o número de autarquias com iniciativas de eliminação de sobrantes por compostagem, nem do número de agricultores e/ou proprietários florestais aderentes a programas de valorização orgânica.
Ainda no capítulo dos aspetos menos conseguidos, gera-nos muita perplexidade nada ser mencionado no relatório relativamente à revisão das normas técnicas de gestão de combustível nas faixas de gestão de combustível das redes primária, secundária e terciária e nas áreas estratégicas de mosaicos de gestão de combustível que já deviam ter sido publicadas há mais de 2 anos, criando situações de corte abusivo e/ou indiscriminado de árvores que poderiam ser preservadas e continuarem a contribuir para o fornecimento dos serviços de ecossistemas.
Os (poucos) sinais positivos
Ainda assim, numa floresta de dificuldades que não augura nada de bom, parecem existir alguns sinais positivos. A começar pela gestão de combustível nos aglomerados rurais e envolvente de áreas edificadas, pese embora até à data não exista informação global sobre a percentagem de hectares geridos na envolvente dos aglomerados, os 508 Condomínios de Aldeia apoiados pelo Programa de Recuperação e Resiliência têm em curso medidas preventivas concretas que são periodicamente monitorizadas para que as populações e edificados estejam mais adaptados ao fogo. Também existe muita expetativa em relação à iniciativa Vales Floresta, apoiada pelo Fundo Ambiental, ainda que a mesma não esteja ainda operacionalizada.
Por último, e continuando a salientar os aspetos positivos, identificam-se duas medidas que nos parecem indiciar uma mudança na resposta das autoridades públicas a problemas concretos e à necessidade de assumirem a melhoria contínua do desempenho como algo fundamental para cumprirem as suas atribuições legais. A primeira relaciona-se com a estabilização de emergência nas áreas queimadas, onde, exemplarmente, se cumpriram os prazos estipulados para a elaboração dos relatórios de estabilização e para o início dos trabalhos de recuperação das áreas ardidas nos incêndios com mais de 500 ha (Carrascal/Castelo Branco, de Baiona/Odemira, de Valverde/Mogadouro e de Senhorim/Nelas) registados em 2023. A segunda tem a ver com a implementação do Sistema de Lições Aprendidas no âmbito do SGIFR, um dos projetos prioritários do Programa Nacional de Ação que já havia sido formalmente recomendado no relatório da Comissão Técnica Independente, após os incêndios de 2017 ocorridos em Portugal.
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