Mário Sacramento assume a Medicina como objectivo, e a intervenção literária, cívica e política como deveres.
Por Filipe Guerra *
“O meu ofício, a minha arte, é a vida – mas é, em primeira-mão, a vida dos outros”. Mário Sacramento (M.S.)
Neste 2019 passam 50 anos do desaparecimento físico de Mário Sacramento, e em 2020 celebraremos 100 anos sobre o seu nascimento. Vivemos meses de justíssima lembrança rumo à homenagem necessária.
Escrever sobre Mário Sacramento é um exercício difícil. São tantas e tão imponentes as várias componentes da sua figura: o Cidadão, o Médico , o Intelectual Escritor e Crítico Literário, o Democrata, o Preso político, o Comunista. Outras componentes há, mas estas são essenciais e estão interligadas em dependência recíproca na formação integral de Mário Sacramento e respectiva compreensão.
Nascido em Ílhavo, cursou Medicina entre Coimbra, Porto e Lisboa, construiu vida em Aveiro. O seu tempo e espaço foi o de um país subdesenvolvido e aterrorizado pela ditadura fascista, de supressão de liberdades e direitos democráticos, de pobreza e miséria massificadas, de guerra colonial, de prisões cheias de presos políticos, tortura e morte, de censura e obscurantismo como políticas de Estado na Cultura e no Ensino, na vida intelectual do país.
Mário Sacramento assume a Medicina como objectivo, e a intervenção literária, cívica e política como deveres. E será logo aos 17 anos que enfrentará a sua primeira prisão, das 5 prisões que sofrerá ao longo da vida.
Como punição com sevícia pela sua intervenção pública e política, o fascismo proibiu o Médico Mário Sacramento de convencionar com o Estado, uma infame perseguição profissional altamente condicionadora. Restou-lhe o seu espaço próprio para a sua sobrevivência, e onde amparou graciosamente tantos desvalidos sem condição económica para aceder aos mais básicos cuidados de saúde, os quais carinhosamente se lhe referiam como o “Dr. Mário Emílio”.
Escritor e crítico literário publica sucessivamente “Eça de Queiroz – uma estética da ironia”, “Fernando Pessoa – Poeta da hora absurda”, “Fernando Namora – O Homem e a obra”, “Há uma estética Neo-Realista?”, “Fratria” e colabora desde cedo com suplementos culturais de jornais e em revistas, como O Comércio do Porto, Diário de Lisboa, Vértice ou Seara Nova. Junte-se ainda a participação em conferências e colóquios.
Debatia presencismo e neo-realismo, materialismo e idealismo, estética e ideologia, existencialismo e estruturalismo, sempre com a prática como critério da verdade e sobre os grandes movimentos literários dizia “sempre preferi vivê-los que escrevê-los”. Dele Fernando Namora escreveu, “se houvesse figura significativa da minha geração literária foi Mário Sacramento”.
Democrata, Antifascista, Comunista e militante clandestino do Partido Comunista Português, Mário Sacramento tinha clara a necessidade urgente de derrubamento do fascismo, e que a Democracia não se poderia condicionar pela exploração económica, que o caminho seria o do Socialismo, porque insistia “onde os privilégios ecónomicos subsistem, os direitos políticos não se enraízam e podem ser coarctados sem dificuldade”.
No seu trajeto de intervenção política assume o diálogo com amplos sectores sociais, dos democratas, dos trabalhadores, dos católicos, como uma necessidade para ampliar convergências na resistência ao fascismo, com corolário na organização do Congresso Republicano de Aveiro. O primeiro dos três Congressos da Oposição Democrática onde a sua figura tutelar ainda que já fisicamente ausente foi inquestionável, e aos quais Aveiro deve a insígnia de “Capital da Liberdade”.
No plano pessoal, é justo acrescentar a esta recordação, os seus mais próximos companheiros de jornada de vida e convívio, Álvaro Seiça Neves, Armando Seabra, João Sarabando, Vasco Branco, Flávio Sardo, Neto Brandão, Carlos Candal, Silveirinha, entre outros, e claro a sua companheira Cecília Sacramento. Aspectos da vida vida social e política recordáveis no seu “Diário”, de leitura obrigatória para compreensão da sua vida e da sociedade aveirense de então.
Mário Sacramento partiu muito cedo, partiu antes do Abril sonhado, mas o seu exemplo e legado ficaram. Uma vida intensa, de inteireza moral, firmeza de princípios, coragem cívica e exemplo de tolerância e diálogo. A sua carta-testamento é um poderoso documento do homem que “Nasci e vivi num mundo de inferno. Há dezenas de anos que sofro na minha carne e espírito o fascismo. Recebi dele perseguições de toda a ordem – físicas, económicas, profissionais, intelectuais e morais. Mas que não as tivesse sofrido, o meu dever era combatê-lo”, que pediu um “paninho vermelho no caixote”, consciente da eminente ausência física quis-se juntar aos que já partiram, legando incentivo aos que ficaram e viriam “não veremos o que quisemos, mas quisemos o que vimos. E este querer é um imperativo histórico. Há milhões de mortos a dizer-vos: avante!”
“Façam o mundo melhor, ouviram? Não me obriguem a voltar cá!” M.S.
* Jurista, vogal do PCP na Assembleia Municipal de Aveiro.