Mais uma vigarice

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Relojoaria.

Para começar, apresento-me: não denunciarei, por razões óbvias, o meu nome, mas dir-lhe-ei que sou um burlão profissional e proprietário duma organização da especialidade, de âmbito mundial, onde tenho investido muito dinheiro, dado que não trabalho só com a sua marca, mas também com as mais prestigiadas do ramo da relojoaria, para além de me dedicar, ainda, à ourivesaria.

Por Diamantino Dias *

Entrou no grande e luxuoso estabelecimento de relojoaria e joalharia do grande Centro Comercial, dirigiu-se a um dos empregados e disse-lhe:

– Bom dia, o assunto que aqui me traz é invulgar, mas, como irá ver, tive que vir incomodá-los.
– Faça o favor de se sentar e diga-me em que lhe poderemos ser úteis.
– Ora bem, eu sei que, por contrato, a vossa empresa não pode prestar assistência a relógios que não sejam da marca que representa e, muito menos, fazê-lo com contrafacções. Acontece que a minha mulher possui esta imitação que lhe foi oferecida pelo patrão, quando estiveram, há dois anos, em Macau, numa Feira Internacional de Calçado, relógio pelo qual tem uma enorme estima. Há uns meses, pediu-me para substituir a pilha, o que fiz com uma comprada nos chineses. Ontem, o relógio parou e, quando foi aberto, verificou-se que a pilha estava oxidada. A minha mulher, com receio de que a oxidação pudesse ter afectado a máquina, pediu-me para vir ao representante da marca não só para trocar a pilha por material fiável, mas também para que se procedesse, se tal viesse a ser necessário, a uma limpeza ou mesmo reparação. Assim, aqui estou eu, pedindo que seja aberta uma excepção e prontificando-me a pagar o que for considerado conveniente.
– Não se importa de me mostrar o relógio?
Tirou-o da caixa, abriu-o, examinou-o durante algum tempo e disse:
– Meu caro senhor, trata-se realmente de uma imitação, mas muito boa, porque, à primeira vista, pareceu-me autêntico. O nosso gerente está ausente e só ele é que pode tomar uma decisão nesta matéria. Logo que chegue, falarei com ele. Se passar cá pelas 15h00, dir-lhe-emos alguma coisa. Muito bom dia e até logo.
Mal o cliente saiu, dirigiu-se ao gabinete do proprietário e explicou-lhe o que, no seu entender, se estava a passar:
– Senhor Gonzaga, trata-se nitidamente de um caso de infidelidade. A mulher engana-o com o patrão e, não podendo receber ostensivamente prendas caras, diz ao marido que se trata de uma imitação. Mas não tenho dúvida absolutamente nenhuma de que isto é o nosso autêntico Mercury Ladies Blue Ribbon.
– Mostre-mo, Fonseca… Realmente tem razão. Olhe que há coincidências levadas dos diabos. Na semana passada, telefonou-me uma senhora, de quem fiquei com as coordenadas, muito interessada nesta raridade. Acha que o fulano nos venderá o relógio?
– Não tem cara de ser muito esperto. Bem conversadinho, penso que sim.
– Então poderemos ter em mãos um excelente negócio, obtendo um bom e rápido lucro sem grandes formalismos, como me pareceu ser desejo da potencial cliente. À tarde, traga-me o homenzinho. Este assunto, como é evidente, fica entre nós e prometo que não me esquecerei de si, Fonseca.

Quando o cliente chegou, foi-lhe comunicado que o gerente gostaria de falar com ele e que o receberia no gabinete.

– Muito prazer em conhecê-lo, faça o favor de se sentar. Aqui tem o seu relógio com uma pilha nova e a revisão feita. Pedi-lhe para falar comigo por causa desta peça que é uma imitação notável. Sou um especialista e confesso-lhe que nunca vi nada assim. Acontece que tenho uma boa colecção de contrafacções e gostaria de lhe juntar esta, oferecendo-lhe, em troca, o nosso Femina Super 2015, cujo preço de balcão é de 220 euros.
– Desculpe, mas há aqui qualquer coisa que não está bem explicada. Como eu já disse ao seu colaborador a minha mulher tem muita estimação pelo relógio e…
– Estou perfeitamente a par da situação, mas não me vai levar a mal se eu tentar convencê-lo a vender-me o relógio, que muito valorizaria a minha colecção. Em negócios, tudo, excepto a honra, tem um preço e eu vou fazer-lhe uma proposta irrecusável: 1 000 euros.
– Ó meu caro senhor, o relógio vale meia dúzia de dólares. Não me esteja a meter bichos na cabeça… Se fosse eu a decidir, vendia-lho de imediato, pois 1 000 euros dar-me-iam muito jeito. O caso é que o relógio não é meu e não quero ter mais problemas, dos que já tenho, com a minha mulher.
– Mas não haverá nada que a sua esposa muito deseje e que se pudesse sobrepor à estimação pelo relógio.
– Deixe-me lá pensar… Ora bem, nós temos um televisor 4K de 65 polegadas que a Empresa ofereceu à minha mulher, pelo Natal, e ela gosta muito de cinema e de programas musicais. O aparelho tem um bom áudio, mas eu sei que ela adoraria ter, e eu também, um surround sound de grande qualidade, mas isso custa uma pipa de massa, quase uns 2 500 euros, segundo vi, há dias, num folheto publicitário. E eu, que sou Guia Turístico, com a pandemia, estou praticamente desempregado e não tenho dinheiro para lhe satisfazer esse desejo.
– E se eu lhe der essa importância?
– Não está a falar a sério?!
– Olhe que estou.
– Bem, nesse caso, arriscaria as mais que possíveis chatices. E até me veio agora à cabeça uma ideia que me dará uma desculpa imbatível: o senhor passa-me um recibo de substituição de pilha e limpeza para provar que cá estive e eu vou dizer à minha Cátia Vanessa que fui assaltado, no metro, e que me roubaram o porta-moedas e o relógio.
– Perfeito. Fonseca, vá-me buscar à caixa os 2 500 euros que eu depois reponho o dinheiro.
– Desculpe, senhor gerente, mas há só mais um pequeno pormenor. Vamos supor que o senhor se arrepende e se queixa que eu lhe vendi um relógio, comprovadamente falso, por uma importância exorbitante. Assim, agradecia que me passasse, para meu descanso, uma declaração de que me comprou uma imitação pela referida importância.
– Se é esse o problema, vai deixar de existir, porque eu já lhe estou a passar o documento. Aqui está, com o dinheiro.
– Muito obrigado. Deixo-lhe a imitação com a respectiva caixinha.

Saiu e, no passeio fronteiro ao Centro Comercial, encontrou-se com uma jovem que lhe perguntou:

– Então, correu bem?
– A primeira fase foi perfeita. Toma o relógio, a declaração e os 2 500 euros.
– Estão a demorar.
– Não, já estou a ver o empregado acompanhado de alguém que deve ser o responsável pela Segurança. Falamos logo, adeus.
– Cavalheiro, sou o major Pereira Fernandes, comandante da Segurança deste Centro Comercial. Faça o favor de me acompanhar.
– Mas o que é que se passa? Há algum problema?
– Sabe bem que há. Não complique a situação.

Dirigiram-se à ourivesaria e, mal entraram no gabinete, o gerente gritou:

– Com que então, vigarizou-me vendendo-me uma falsificação barata por um balúrdio!
– Não estou a entender. Estive uma hora a explicar-lhe, na presença do seu empregado, que o relógio era falso. O senhor disse-me que era essa a razão pela qual o queria comprar, redigindo e assinando um documento, onde declarava o que acabo de referir e, agora, vem-me dizer que eu o vigarizei?!
– Mas o relógio que eu vi era autêntico e você vai pô-lo, aqui, a bem ou a mal.
– Senhor Gonzaga — perguntou o major — essa declaração existe? Caso a tenha assinado, não vejo em que possa fundamentar uma queixa, pelo que o aconselho a que cheguem a um acordo.
– Sou da opinião do senhor major e proponho-me efectuar uma reunião, a sós, com o proprietário deste estabelecimento, o senhor António Pedro du Bois-Lamothe e Gonzaga, estando convicto de que chegaremos rapidamente a uma conclusão que interesse a ambos.

O proprietário, surpreendido pelo facto do estranho cliente conhecer o seu nome, aquiesceu e, após a saída de Fonseca e do major, perguntou:

– Vai dar-me o relógio ou o dinheiro?
– Nem uma coisa, nem outra, porque, mesmo que o quisesse fazer, não poderia, pois estão, tal como a sua declaração, em poder da minha mulher.
– Então qual é o acordo a que chegaremos?
– Vai ver, pedindo-lhe que me ouça com atenção. Para começar, apresento-me: não denunciarei, por razões óbvias, o meu nome, mas dir-lhe-ei que sou um burlão profissional e proprietário duma organização da especialidade, de âmbito mundial, onde tenho investido muito dinheiro, dado que não trabalho só com a sua marca, mas também com as mais prestigiadas do ramo da relojoaria, para além de me dedicar, ainda, à ourivesaria. Assim, para além das imitações, sou obrigado a possuir os originais, o que, como compreende, implica a aplicação e imobilização de capitais muito importantes. Nesta conformidade, o Projecto Mercury Ladies Blue Ribbon não poderia, nunca, apontar só para um lucro de 2 500 euros que não seriam suficientes, nem para pagar as despesas com esta operação que envolveu não só viagens e estadia de duas pessoas para estudar a situação no local e executar a acção planeada, mas também trabalhos de preparação e investigação. A propósito, esqueça o contacto da cliente interessada no relógio, o número telefónico pertencia a um telemóvel descartável e o email já não existe.
– Mas, afinal, o que é que pretende?
– Só mais um momento, pois estou a terminar. Sei que o senhor investiu muito tempo, dinheiro e prestígio para ser o representante, no país, de uma das mais prestigiadas marcas da relojoaria mundial, estatuto que pressupõe, no entanto, uma conduta exemplar que não se compagina com a compra de um relógio por 2 500 euros, quando o seu valor de mercado se situa nos 5 870 euros, a um ingénuo marido desempregado a quem a mulher engana com o patrão. Se este, chamemos-lhe eufemisticamente, negócio viesse a ser conhecido pela sua representada, não duvida que perderia, para sempre, a sua querida e valiosíssima representação. Portanto, o objectivo principal desta minha operação é receber 150 000 euros, comprometendo-me a devolver a sua declaração e a não tornar público este assunto. Este dinheiro deverá sair da sua conta pessoal, não aceitando que me diga não ter disponibilidade para tal, porquanto conseguimos entrar nas suas contas bancárias e sabemos que vendeu, ontem, aplicações financeiras no valor de 275 000 euros. Meu caro senhor, dou-lhe um quarto de hora para ordenar, pela NET, a transferência para uma das minhas contas, cujo o número lhe darei durante a operação, dos 150 000 euros. Seguidamente, permitir-me-á confirmar, através da utilização do seu computador, que a transferência teve êxito, comprometendo-me a que sua declaração de compra será entregue, durante a minha presença nesta loja, na sua caixa de correio deste Centro Comercial. Para finalizar, quero informá-lo que as nossas conversas, por uma questão de segurança, têm sido gravadas, mas a respectiva cassette ser-lhe-á entregue juntamente com a sua declaração de compra .

Nota final – No âmbito desta ficção, o senhor António Pedro du Bois-Lamothe e Gonzaga continua a ser o representante, no seu país, de uma das mais conceituadas marcas mundiais de relógios.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura).

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