Loira de olhos azuis

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José Galante nasceu nos meados da década de sessenta do século passado e, desde cedo, revelou-se um celibatário convicto e militante, dizendo frequentemente que, até aos quarenta e cinco, não pensaria casar e, depois, logo se veria, mas que era capaz de já ser um pouco tarde para mudar de ideias e estado.

Por Diamantino Dias *

Esta atitude não pressupunha que não se interessasse pelo sexo feminino, bem pelo contrário, pois rapidamente se tornou um pinga-amor de reconhecidos méritos, podendo mesmo vir a ter sido Presidente da Assembleia Geral dos Engatatões, caso esta entidade fosse oficialmente reconhecida.

Zé Galante era alto, bem constituído, senhor de uma força e agilidade invulgares, moreno, com cabelo ondulado, bigode à galã de Hollywood anos cinquenta e tinha um cuidado extremo com a aparência, chegando ao ponto de envernizar as unhas, o que, para a época, era incomum, até porque era judoca e praticante de andebol. Assim, não era de estranhar o êxito que alcançava junto das mulheres.

Curiosamente, mantinha um ficheiro original, ultra-secreto e perfeitamente organizado sobre as suas conquistas: duas caixas de arquivo morto, com envelopes A4 de fole, numerados e dispostos por ordem cronológica, contendo, cada um deles, uma ficha com fotografia, dados pessoais, elementos exaustivos e pormenorizadíssimos referentes à relação e, ainda, lembranças, tais como, cartas, prendas e, peça obrigatória, umas cuecas da arquivada em questão.

Uma manhã, ao chegar à Repartição, Zé Galante deparou com uma loura de olhos azuis, sentada na secretária defronte da sua. Detentor dum doutoramento em morenas, catedrático em mulatas, e tendo sempre manifestado um grande desinteresse pelas loiras, não pelo conhecido preconceito de que as loiras são burras, porquanto a inteligência era o que menos lhe interessava numa mulher, mas porque tinha a convicção, não fundamentada pela experiência, de que a fogosidade feminina diminuía na razão directa da tonalidade do cabelo, ocupando o negro asa de corvo o primeiro lugar dessa escala e o branco o último, o Zé sentiu-se, inexplicável e subitamente, naufragar no azul profundo daqueles olhos, emoldurados por inefáveis estrigas douradas.

Levantou-se, com passo pouco firme foi cumprimentar a nova 1.º Oficial, de seu nome Amélia, apresentou-se, amaldiçoou a circunstância de lhe terem sido distribuídos serviços externos, logo nesse dia, e prometeu, a si mesmo, comprovar empiricamente a veracidade da sua Escala de Fogosidade, caso a colega fosse solteira, o que veio a verificar ser verdade.

A partir do dia seguinte, começou a pôr em prática as NEP (Normas de Execução Permanente) do Manual do Engate Descartável: às 12h30, acompanhar a Amélia até ao restaurante e convidá-la para almoçar (sem êxito); às 17H30, convite para tomar um cafezinho (resultou, intermitentemente, só ao fim de uma semana); tentativa de braço dado (repelida); ida ao cinema (só ao fim de três meses, à “matinée”, e sem toques, nem com os braços, nem no sapato).

Ao fim de meio ano, a Amélia deixara de ser um capricho, mais uma, o possível envelope A4 n.º 12, para ser uma obsessão, uma paixão, uma mulher a quem o Zé Galante não se importaria de sacrificar tudo, inclusive, os seus sagrados votos de solteirão impenitente.

Assim, pôs de parte o predito Manual por que tinha regido, durante quinze anos, a sua vida amorosa e resolveu seguir o normativo da Cartilha dos Apaixonados, cujo primeiro artigo prescrevia, para os homens: “Pedir, explicitamente, de preferência por escrito, namoro à mulher amada.” BINGO! A doce Amélia (passe a redundância) aceitou, mas pôs condições, das quais se citam duas: primeira, conhecedora, que era, da crónica do Zé, exigia a mais estrita fidelidade; segunda, amplas liberdades, só após a benção matrimonial. O Zé, para surpresa de todos os que o conheciam, incluindo ele próprio, aceitou de imediato.

Cumprindo, escrupulosa e sequencialmente, as normas da supracitada Cartilha, chegou-se, passado um ano, ao art.º 25.º, tendo o Zé, conforme o preconizado, “pedido a namorada em casamento, de joelhos, após um jantar regado com espumante, caso as possibilidades do pretendente o permitam.” No dia seguinte, executou uma tarefa não prevista no livrinho – queimou o sacrossanto arquivo secreto, incluindo a “lingerie”, neste auto de fé.

O casamento realizou-se, dois meses depois, com pouquíssimos convidados: os pais, o irmão, a irmã e os padrinhos do noivo e os padrinhos da noiva que a tinham criado, em Coimbra, porquanto era órfã desde criança e não tinha mais familiares.

Após o almoço, servido numa marisqueira de Aveiro, viajaram num Alfa para Lisboa. Durante o percurso, Amélia manifestou um desejo ao marido: não era de temperamento demasiadamente romântico, mas, como ele bem sabia, gostava de telenovelas e tinha visto uma em que o primeiro jantar era servido, no quarto, à luz de velas, sendo esta a única iluminação utilizada durante toda noite de núpcias, pelo que gostaria que tal acontecesse com eles. Zé aquiesceu de imediato, apercebendo-se das imensas potencialidades desta proposta luminotécnica.

A noite passou-se normal e satisfatoriamente, constituindo, para ela, uma sequência de óptimas novidades e dulcíssimas experiências e, para ele, uma agradabilíssima e variada sessão pedagógica. De manhã, Zé foi ao quarto de banho e viu, pousada no bordo do lavatório, uma caixinha que não conhecia. Curioso, abriu-a e ficou estupefacto, quase a deixando cair, porque, dentro dela, boiando num líquido incolor, estavam as duas íris azuis, que o tinham encantado, formando um ângulo de 45 graus que fazia lembrar um caricatural sorriso trocista. De repente, compreendeu tudo, reflectiu sobre a situação, concluiu que uma atitude crítica, mais ou menos radical da sua parte, não lhe seria útil, bem pelo contrário, e voltou para a cama.

Pouco depois, Amélia acordou e olhou para ele com um sorriso tímido, nos olhos castanhos de uma vulgaridade atroz, dirigiu-se à casa de banho e, passado poucos minutos, voltou com os seus esplendorosos olhos azuis espelhando uma tristeza apreensiva que decidiu o marido a viver, durante o dia, com uma mulher de maravilhosos olhos azuis marinhos e, dormir com outra, com uns olhos de um castanho vegetal, mas quase sempre escondidos por detrás das pálpebras cerradas pelo sono, o que veio a acontecer sem problemas e num clima de satisfatória felicidade.

Ao fim de um ano, nasceu um pimpolho rosado, grande e rechonchudo, mas, para espanto do pai, com uma farta cabeleira castanha. Considerando, por um lado, que a cor do cabelo dos filhos não se obtém pela média da dos progenitores, por outro lado, que toda a família do pai tinha cabelo preto azeviche e, tendo a certeza que não tinha havido mouro na costa, só restava, tanto quanto Zé Galante sabia, uma hipótese, pelo que perguntou à mulher:

– Melita, sabes se alguém da tua família tinha o cabelo castanho?

– Toda a gente: a minha mãe, o meu pai e, inclusive, eu. Acontece que não gostava do meu “look”, pelo que, logo que tive possibilidades económicas, comecei a pintar o cabelo de louro, nos últimos tempos, com redobrada frequência e mais cuidadosos e secretos retoques caseiros, e pus lentes de contacto azuis. Desculpa se nunca te disse, mas a partir de determinado momento, não tive coragem para tal, pois tinha medo de te perder. Mas, agora que sabes, se não gostas, Zé…

Nota – O autor não escreve segundo as normas do Actual Acordo Ortográfico.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

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