“Infanta Joana – Um novo olhar”

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Infanta Joana – Um novo olhar.

Joana foi uma mulher da sua época. É uma afirmação simples, mas que possui um significado bastante mais profundo do que à primeira vista possa parecer.

Francisco Messias Trindade *

Muito se tem escrito sobre a infanta/princesa Joana. E muito do muito escrito não passa de uma repetição dos textos originais que são o Memorial da muito excelente princesa e muito virtuosa senhora a senhora infanta Dona Joana, nossa senhora e a Crónica da Fundação do Mosteiro de Jesus de Aveiro.

Com roupagens modernizadas recitam-se, quase sempre acriticamente, os conteúdos desses dois textos fundamentais; se apenas se limitassem à repetição talvez não houvesse motivo para preocupação séria. O maior mal é que frequentemente os autores introduzem considerações, factos e extrapolações de sua autoria, não consubstanciados em documentação que acabam por entrar em textos subsequentes como factos provados e confirmados.

O Memorial é uma obra hagiográfica, e são conhecidas as características e finalidades de uma qualquer hagiografia. Não é por isso suposto que seja uma obra de carácter histórico ou mesmo da cronística. O admirável é o facto destes textos monásticos não terem sido, até agora, objecto de análise crítica do seu valor histórico; pelo contrário, continua a usar-se a informação nele contida quase como letra de lei. Foi este o enfoque crítico que se colocou sobre o texto monástico e a vida de Joana nele relatada.

A elaboração de textos como os indicados correspondeu a uma determinação dos responsáveis da ordem dominicana que incentivavam os mosteiros a registar para a posteridade as histórias das suas fundações e a passar a escrito as vidas de alguns de seus membros mais ilustres.

Para além da finalidade imediata de preservar para memória futura o historial do mosteiro esses textos eram uma forma de publicitação da ordem e do mosteiro. Com isso esperava-se conseguir maiores adesões para a vida religiosa e, consequentemente, maiores doações para o património dos mosteiros. Era uma forma de engrandecimento da ordem, sob o ponto de vista material pela captação de doações e legados pios, tanto maior quanto maior fosse o prestígio do mosteiro. A projecção de uma das suas figuras com olor de santidade era uma mais valia para a propaganda monástica.

Joana foi uma mulher da sua época. É uma afirmação simples, mas que possui um significado bastante mais profundo do que à primeira vista possa parecer. Do meio de documentos e factos emerge uma mulher que, tal como tantas outras do seu tempo, acabou por ser vítima das circunstâncias que a rodearam e para as quais pouco terá contribuído de forma voluntária. Joana estaria, seguramente, destinada a um casamento de estado como suas tias e primas.

Resguardada do mundo exterior como se adequava ao seu estatuto de filha de rei destinada a um consórcio ao mais alto nível, Joana desde cedo viu o seu nome envolvido em negócios matrimoniais de conveniência. Entra no mosteiro de Aveiro na condição de hóspede.

Vive de suas rendas com as quais mantém uma Casa de dimensão razoável em termos de serviçais, criadagem, oficiais e escravos que tratam das suas necessidades e a serviam dentro do espaço conventual, depois de uma primeira fase em que tal tarefa estava a cargo das freiras de Jesus; continuava com a sua rede de influências que ia explorando conforme achava e tinha por necessário; continuava a fazer nomeações para cargos de rendimentos apreciáveis; senhoreava terras na região de Montemuro e a partir de 1485 a vila de Aveiro e outras terras vizinhas.

Como senhora mui virtuosa e verdadeira e católica cristã Joana preocupava-se com a salvação de sua alma, por isso pouco ou nada deixa ao mosteiro optando antes por despender os seus bens em obras pias pela salvação de sua alma.

As freiras de Jesus sentindo-se defraudadas por quase serem excluídas apropriaram-se rapidamente dos bens da defunta infanta; o testamenteiro de Joana não consentiu tal desiderato e perante a obstinação das religiosas em devolver os bens usurpados recorre à justiça tendo ganho a causa; as religiosas são, por ordem de D. João II, obrigadas a entregar tudo aquilo de que se apossaram de forma indevida; daí em diante o seu discurso irá mudando conforme as circunstâncias: de espoliadas pelo monarca dos bens que Joana lhes “doara” a desistentes da herança uma vez que o valor dos bens de Joana era inferior às dívidas que ela deixara.

As freiras do mosteiro de Jesus de Aveiro elaboraram uma crónica da fundação do cenóbio e escolheram uma figura para projectar. A possibilidade de utilizar a vida da fundadora para ilustrar a ficção sagrada era algo a considerar; e porque não utilizar uma outra figura de maior estatuto social? Joana, filha de rei e irmã de rei reunia os requisitos para ser a escolhida. O óbice de nunca ter professado era um problema que se contornaria.

O estatuto era bem mais importante que o pormenor de nunca ter sido freira. Assim, a vida de Joana é convenientemente transformada numa ficção sagrada que iria perdurar e ser ampliada ao longo dos tempos. Serviu de bandeira para o mosteiro e tentou-se elevar a homenageada à categoria de Santo.

O processo de canonização de Joana falhou embora não completamente. A teia de propaganda construída à sua volta não mais cessou de alargar o seu raio de acção. O mosteiro conheceu o seu fim, o que demonstra que as instituições também morrem; a figura de Joana permaneceu viva alimentada por um culto que nada tem de popular, mas que foi aproveitado por entidades oficiais e institucionais para sua própria projecção. E no fundo, Joana foi apenas uma mulher do seu tempo a quem vestiram umas roupagens adequadas ao fim que dela pretendiam alcançar.

Mostrar Joana para lá da propaganda, por detrás das narrativas aduladoras, pias e sem fundamento, na maior parte dos casos, com que a incensaram, dando a conhecer o melhor possível a realidade em que Joana se movimentou foi o objectivo deste trabalho. Trazer de volta a Joana original é a melhor forma de a homenagear e devolver a autenticidade de mulher do seu tempo num mundo que lhe não foi particularmente favorável.

  • Doutor em História, autor do livro “Infanta Joana – um novo olhar”.

O lançamento está agendado para dia 21 de Dezembro, no auditório da Biblioteca Municipal de Aveiro, pelas 16:00. Será apresentador o Prof. Doutor Filipe Alves Moreira da Universidade do Porto.

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