Há quem afirme que os cafés em Portugal deram origem a um fenómeno social que tem perdurado ao longo das décadas, definindo o caráter da sociedade na generalidade, particularmente nos anos que se seguiram às grandes guerras mundiais do século passado. Mais difícil será discernir se foram os cafés que moldaram as características do nosso povo ou se foi o caráter do nosso povo que originou a criação dos cafés.
Por Manuel Leques *
Em Aveiro continuam a existir inúmeros estabelecimentos desse tipo, conforme é fácil de constatar. São, no entanto, cafés de reduzidas dimensões, se comparados com aqueles que existiram em outros tempos. Também hoje os cafés satisfazem necessidades de ordem diferente. Nota-se, em geral, que a clientela entra num café para o consumo de uma refeição rápida, que pode consistir no almoço, no pequeno-almoço ou numa merenda. E o tempo de permanência é quase sempre diminuto.
Antigamente era bem diferente. O dinheiro, sendo pouco, ainda menos do que hoje, fazia com que as pessoas consumissem as suas refeições em casa. Os cafés eram essencialmente locais de confraternização, para onde as pessoas convergiam a seguir às refeições para tomarem a sua bica e conversarem com os seus amigos. A circunstância de quase toda a gente nas cidades ter duas horas para o almoço terá contribuído para o hábito de uma permanência mais prolongada. Todavia, à semelhança do que acontece com as marés na ria, as enchentes nos cafés aconteciam duas vezes por dia, neste caso, uma vez depois do almoço e a outra a seguir ao jantar.
Isto de chamarem bica a um café era coisa mais dos lisboetas. Mas havia muitos que usavam esse termo em Aveiro. Diz-nos o folclore que esse termo foi derivado da sigla que resulta da frase ‘Beba Isto Com Açúcar’. A maioria das pessoas pedia simplesmente um café. Mas havia também quem pedisse um cafezinho, que era a mesma coisa que um café, e que podia ser acompanhado de um bagacinho, também a mesma coisa que um bagaço. Alguns queriam até o café com um cheirinho, que era um pouco de bagaço borrifado sobre o café e para o qual não havia custo adicional. Havia até quem tivesse a ousadia de pedir um cheirinho de brandy. Era o chamado atirar o barro à parede. Se não pegasse também ninguém morria. Os mais gulosos pediam um bolinho. E no final queriam a continha.
Inho e inha tinha-se tornado numa pandemia que se propagou extensivamente e que, segundo alguns pseudoanalistas, reflete o caráter de grande parte da nossa gente. Outros dizem que são apenas hábitos que apanham raízes. Quem sabe?
Eram outros tempos, outras gerações, outros costumes, que acabaram por evoluir. Esta viagem no tempo é uma viagem de sentido único. O que fica para trás perde-se de vista e da mente gradualmente, razão por que nos afeta cada vez menos. Como os insetos e animalejos em ilhas flutuantes nos grandes rios tropicais, durante a nossa viagem pela vida mal nos apercebemos daquilo que ocorre à nossa margem. O nosso é um mundo limitado pelas dimensões do amontoado de ervas, raízes e terra que constituem essas ilhas e que flutuam sem recurso nem governo pelo rio abaixo na direção da foz, do mar e do oblívio. Cada uma dessas ilhas flutuantes constitui uma geração que segue, rápida ou vagarosamente, à mercê da corrente da água, umas atrás das outras. Podem incidentalmente tocar-se, mas na realidade não coexistem.
No final de cada geração, restam as memórias, àqueles que tiverem a ventura, o tempo e o interesse suficientes para viver e ter visto viver, e no final serem capazes de comunicar, melhor ou pior, sobre essas reminiscências. E as memórias das diferentes gerações aparecem em linguagens diferentes, sendo particularmente entendidas e sentidas apenas por quem falar a mesma língua – porque cada geração fala e sente num dialeto distinto. Quem não falar a preceito a linguagem dos outros limita-se a entender um ou outro aspeto dessas memórias, sendo penalizado pelas suas inerentes limitações.
Quem haveria de imaginar que existia então Aveiro um café pomposamente chamado Trianon. Para informação dos mais novos, ou daqueles que não são de Aveiro, tal café existiu mesmo. Mas é evidente que esse estabelecimento nunca se assemelhou nem à arquitetura nem ao luxo dos Trianon que fizeram, e continuam a fazer, parte do complexo do palácio de Versalhes – o Grand Trianon e o Petit Trianon.
* Autor do livro “Café Trianon – Trilhos: História(s) da História”. A apresentação da obra irá decorrer no próximo dia 12 de maio, Feriado Municipal e Dia da Padroeira, pelas 18:30, no Salão Nobre do Clube dos Galitos de Aveiro (continuar para mais informações).
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