No início do século XXI, com a certificação, os ovos moles entraram numa fase em que, sobre o orgulho bairrista e nacional, foram elevados a símbolo, a monumento, a património, a um tradicionalismo.
Nuno Rosmaninho e Jorge Pacheco dos Santos *
Na Primavera de 2017, num dia luminoso e quente, a capela da Vista Alegre encheu-se de pessoas em trajes coloridos para entronizar novos membros da Confraria dos Ovos Moles de Aveiro. Resplandecia o amarelo-torrado dos gabões. Havia em tudo pompa e humor. «Juro levar os ovos moles ao mundo inteiro, isto se não os comer primeiro!»
O aparato da arquitectura barroca conferia gravidade à cerimónia. A promessa de espalhar os ovos moles, se a gula os não fizesse desaparecer primeiro, dava-lhe graça. Celebrar o empenho com uma dentada estava entre a prova e a comunhão.
Ao sair para o rossio, o sol inclemente reverberou nos gabões e nas vestes das confrarias. As instalações da fábrica de porcelana enquadravam um espectáculo de cor e tradição, acentuavam-no, e fizeram-me perguntar como se chegou aqui. O que aconteceu de século em século para que, ao entrar o vigésimo primeiro, um doce feito de açúcar, gemas de ovo e água mobilizasse tanta energia, tanto respeito, tanto apreço? É isto que vamos tentar explicar.
Os estudiosos têm mostrado que as tradições atravessam três fases. Num primeiro momento, os ovos moles eram em Aveiro um costume, uma prática culinária corrente, apreciada sem considerações bairristas.
O valor identitário chegou num segundo momento, quando passaram a ser admirados como uma representação cultural antiga, autêntica e própria da cidade. O que aconteceu no fim do século XX e conduziu à actual época de certificação foi um processo de patrimonialização, durante o qual a população se tornou hiper-consciente da sua valia e mobilizou para a sua defesa uma sobre-codificação que garantisse a autenticidade, a genuinidade e o valor.
A sua consagração como produto com Indicação Geográfica Protegida marca uma nova etapa na apropriação identitária dos ovos moles.
Os costumes, as tradições e os tradicionalismos pontuam três modalidades de relação da sociedade com a cultura, incluindo a gastronómica. Os ovos moles foram um costume de Aveiro até meados do século XIX. Na segunda metade de Oitocentos e sobretudo a partir do século XX, adquiriram um significado tradicional, particularizando Aveiro no seio de Portugal e, algumas vezes, Portugal no estrangeiro.
Este processo de tradicionalização cresceu de modo extraordinário durante o Estado Novo, dando origem a expressões de orgulho bairrista e de defesa cada vez mais intransigente da qualidade. No início do século XXI, com a certificação, os ovos moles entraram numa fase em que, sobre o orgulho bairrista e nacional, foram elevados a símbolo, a monumento, a património, a um tradicionalismo.
Um ano após a cerimónia de entronização na capela da Vista Alegre, foi inaugurada na sala dos Morgados da Pedricosa uma exposição fotográfica dedicada aos ovos moles.
O Sagrado e o Profano junta as barricas pintadas ao esplendor do nu feminino. Imaginei que, tendo o corpo uma feição profana, o sagrado havia de estar nos ovos moles. Supus, depois, que a doçura dos ovos moles também não escapa ao profano e que àquele nu se poderia chamar divino. Por fim, concluí ser excelsa a extrema tentação da beleza e do paladar.
E assim o tempo, no seu lento rodar, levou uma sobremesa de açúcar e gemas à sagração terrena e espiritual. Aveiro revê-se na reverberação dourada dos ovos moles e pede que os olhem como prazer e cultura.
* Autores do livro “História dos Ovos Moles de Aveiro”, aqui reproduzido num excerto.
A Confraria dos Ovos Moles de Aveiro, em parceria com a Associação de Produtores de Ovos Moles de Aveiro, agendou a apresentação do livro “História dos Ovos Moles de Aveiro” para 14 de dezembro, às 18:30, no pequeno auditório do Centro Cultural e de Congressos de Aveiro. Uma obra da autoria de Nuno Rosmaninho e Jorge Pacheco dos Santos, com ilustrações da artista plástica Elizabeth Leite.