Haverá um “lado bom” no feedback negativo?

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Vários autores têm vindo a alertar para o risco de que uma utilização excessiva e, sobretudo, acrítica de várias ferramentas digitais, pode incentivar nas pessoas “comportamentos que jamais ocorreriam no mundo real”.

Por Mário Ceitil *

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A título de exemplo, Chamorro-Premuzic assinala que “no mundo real, se passarmos o tempo todo a falar sobre nós mesmos e a divulgar a todos os outros tudo aquilo que fazemos e pensamos, sem qualquer filtro ou inibição, as pessoas irão abandonar a sala e, a menos que sejamos o seu patrão, hão de dar-nos a entender que estamos a ser desagradáveis”. (*)

Apesar da justeza desta observação, seguramente validada pela sensação de “falta de ar psicológico” que eu, e os possíveis leitores, várias vezes experimentámos quando confrontados com interlocutores com egos insuflados, que estão sempre ansiosos por nos bafejarem com a pseudo grandiloquência dos seus feitos, ideias ou propósitos, o que é facto é que esse excesso de exposição pessoal, que pode ser criticável e inconveniente no “mundo analógico”, é algo não só incentivado como enormemente valorizado no mundo digital.

De facto, nas redes sociais parece ter-se instalado uma espécie de síndrome narcisista coletiva, através da realização intensiva de atividades “egocêntricas e egoístas” como, por exemplo, “publicar selfies, partilhar pensamentos, envolver-se em níveis inadequados de autorrevelação pública e difundir os nossos sentimentos, pontos de vista, atitudes e crenças para o mundo como se fôssemos o centro do Universo ou todos os outros se importassem com isso” (*).

Esta realidade configura não apenas uma profunda mudança de atitude relativamente a toda a fenomenologia das interações sociais, mas é também algo que tem expressão e consequências de grande relevância nos processos de construção da identidade pessoal, que se torna cada vez mais influenciada pelos fatores de aceitação e de aprovação externos, consubstanciados na qualidade e, sobretudo, na quantidade dos retornos dos posts colocados nas diferentes plataformas.

Assim, hoje chega a medir-se a importância de uma pessoa pela quantidade de “amigos” nas redes sociais e a qualidade dos seus atributos pelo número de “gostos” obtidos em cada post.

Mais do que isso, e ainda mais perigoso, as pessoas mais dependentes das redes sociais e com estruturas de identidade pessoal menos sólidas, podem de facto fazer depender a qualidade e firmeza da sua afirmação pessoal da natureza dos retornos obtidos, que são sempre aguardados com ansiedade e expectativa.

Este processo tem uma consequência direta num fenómeno psicológico que Chamorro-Premuzic define como “intoxicação de emissões (…) e que ocorre quando um individuo experimenta os aspetos da sua autoestima e valorização social pelas avaliações e reações dos outros nas redes sociais”. (*)

Como essas avaliações e reações obtidas nas redes são, no geral, positivas e muitas vezes insufladas por adjetivos grandiloquentes, que fazem crer que um comportamento banal e normal configura um acontecimento verdadeiramente extraordinário, muita gente acaba por desenvolver uma autoestima distorcida de si própria, vivendo sob a “ilusão de que tudo o que faz é admirável”, ficando, por conseguinte, a sua autoimagem “viciada nesses lubrificantes psicológicos de autoaprimoramento” (*).

A esta luz, talvez seja prudente relativizarmos uma certa valorização, talvez um pouco excessiva, que tem vindo a ser feita da ideia de “autenticidade” e que se espelha numa exibição pouco contida de aspetos e de vivências pessoais que, na maior parte dos casos, interessa muito mais aos próprios protagonistas do que aos possíveis destinatários das mensagens.

A corrente da Psicologia Positiva que tem vindo a valorizar, e muito bem, a existência e o fomento de estados psicológicos de “well being”, tem dado algum lastro para abordagens mais generalistas, e menos bem fundamentadas, que têm conduzido a uma quase absolutização da ideia de que cada um deve ser “autêntico”, no sentido de exibir abertamente os seus verdadeiros sentimentos e características pessoais, como se essa fosse a base fundamental da felicidade pessoal.

No entanto, e como o autoconceito não “cai do céu”, mas é forjado no complexo e dinâmico jogo das interações do self consigo próprio e com os outros, se uma pessoa faz depender o seu autoconceito dominantemente de processos de feedback positivo, que reforçam e consolidam a ideia que cada um tem de si próprio, o facto em si pode criar condições para que se desenvolva uma autoimagem distorcida da realidade e uma consequente “autenticidade” igualmente distorcida.

Dir-se-á que não interessa se a autoimagem é distorcida ou não, mas sim que seja assumida com autenticidade.

Mas será assim? Qual será a vantagem de” sermos como somos de pudermos ser uma versão melhor de nós mesmos? Porquê fazer o que parece natural, quando podemos parar, pensar e agir de uma forma que nos torna mais eficazes?” (*).

Dizer a uma pessoa que ela é “fantástica”, “extraordinária” e por aí fora, quando o que fez não passa de uma mera ação normal, ou até banal, será realmente benéfico? Sê-lo-á seguramente, como compensação narcisista para quem o recebe. Mas será eficaz, tendo em vista um possível aperfeiçoamento dessa pessoa?

Mais uma vez: o feedback positivo é, por definição positivo, não porque em si mesmo configure uma apreciação qualitativa de um facto ou atitude como “bom, mas simplesmente porque o seu “outcome” corresponde à expectativa de quem o recebe.

Se, para além da mera gratificação pessoal de alguém, quisermos contribuir para que essa pessoa possa efetivamente tornar-se melhor do que é, talvez seja importante estudar as condições e as formas mais adequadas para lhe sugerir a possibilidade de descobrir comportamentos alternativos.

Não se trata, obviamente, de criticar a pessoa, como se “fazia antigamente”; mas também não se trata de pura e simplesmente, “esfregar o ego” a alguém, sobretudo a quem de todo não o merece.

É por tudo isto que, em contextos de liderança, Jeffrey Pfeffer assinalava que “ser-se autêntico (…) é praticamente o contrário daquilo que os líderes devem fazer”, acrescentando que “ninguém é líder para ser ele próprio, mas para exercer sobre os outros a influência mais positiva que puder”. (*).

Por isso, os bons líderes gostam de se reunir de pessoas construtivamente críticas que os ajudem a melhorar, ao contrário de outros que “não são autocríticos e preferem cercar-se de bajuladores” (*).

Porque, num mundo em que abundam líderes de forte pendor narcisista, “quanto pior se é, enquanto líder (e não só), mais se pode esperar ser bajulado pelas pessoas”. (*)

(*) Todas as referências assinaladas neste texto são extraídas de CHAMORRO-PREMUZIC, T. (2024). Eu, Humano – Uma Reflexão Sobre a Inteligência Artificial e a Automação na Busca de Recuperar o que nos Torna Únicos. Lisboa: Ideias de Ler.

* Formador e professor universitário Artigo originalmente publicado no site Linktoleaders.pt.

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