O gozo de férias neste período pandémico jamais poderá ser imposto, antes só proposto, aos jogadores.
Por João Leal Amado *
Suspensas que estão as competições futebolísticas, em virtude da pandemia originada pelo novo coronavírus e pela COVID-19, alguns clubes optaram por antecipar o período de férias dos jogadores, fazendo-o coincidir com os dias de distanciamento social e de confinamento que atravessamos. Entre esses clubes contam-se, desde logo, dois dos maiores emblemas nacionais, os rivais lisboetas Sporting e Benfica, segundo notícias recentemente veiculadas. A questão que se coloca é: será isto legal? Será possível, do ponto de vista jurídico, que os jogadores profissionais de futebol gozem as férias a que têm direito neste tão singular período que estamos a viver?
O regime jurídico do contrato de trabalho desportivo, vertido na Lei n.º 54/2017, de 14 de julho, limita-se a estabelecer que o atleta tem direito ao gozo do período de férias previsto na lei ─ isto é, no Código do Trabalho ─, sem prejuízo de disposições mais favoráveis constantes de convenção coletiva de trabalho. Ora, o Código do Trabalho prevê que o período de férias deverá ser marcado por acordo entre empregador e trabalhador. Na falta de tal acordo, competirá ao empregador marcar as férias, mas só dentro da baliza temporal representada pelos meses de maio a outubro (art. 241.º). Por seu turno, o CCT entre a Liga e o Sindicato dos Jogadores prevê que a época de férias deve ser escolhida de comum acordo entre a entidade patronal e o jogador, cabendo à entidade patronal, na falta de acordo, fixar a época de férias, «da qual dará conhecimento ao jogador com antecedência não inferior a 30 dias» (art. 26.º).
Pelo exposto, parece retirar-se com segurança das várias normas aplicáveis ao caso que o gozo de férias neste período pandémico jamais poderá ser imposto, antes só proposto, aos jogadores: se não houver acordo quanto à marcação das férias, estas poderão, decerto, ser marcadas pela entidade empregadora desportiva, unilateralmente, mas só entre maio e outubro, segundo o Código do Trabalho, ou só com uma antecedência não inferior a 30 dias, segundo o CCT. Por certo, nenhuma destas condições se verifica no caso presente, pelo que o gozo de férias no mês de abril, em plena crise pandémica, só é admissível, do ponto de vista jurídico, se houver acordo entre as partes.
Em todo o caso, o direito a férias tem finalidades que a própria lei enuncia. Ele deve ser exercido «de modo a proporcionar ao trabalhador a recuperação física e psíquica, condições de disponibilidade pessoal, integração na vida familiar e participação social e cultural», como se lê no n.º 4 do art. 237.º do Código do Trabalho. Ora, não é preciso gastar muita tinta para demonstrar que estes objetivos das férias, ou alguns deles, não são alcançáveis no mês de abril de 2020: sim, talvez as férias gozadas agora permitam a recuperação física dos jogadores e, quiçá, alguma integração na vida familiar (porventura até excessiva); mas a parte psíquica, emocional, a disponibilidade pessoal, o corte com o ambiente quotidiano e a partida para locais diferentes, muitas vezes distantes, para “recarregar baterias”, tudo isso é manifestamente impossível nos tempos que atravessamos, à escala global.
O tempo presente é, pois, um tempo em que os interesses das partes, em matéria de férias, tendem a contrastar vivamente: os clubes invocam exigências imperiosas, ligadas à paralisação da “indústria do futebol”, para fazer com que os jogadores gozem agora as suas férias, ou parte delas; os jogadores invocarão que, na prática, o momento que atravessamos os impede de desfrutar plenamente das férias a que têm direito, pois gozar férias, hoje, não significa apenas descansar o corpo e aliviar os músculos.
Creio que ambas as partes têm razão. Julgo que a solução assenta mesmo no diálogo, na obtenção de um acordo, em que ambas as partes reconheçam os legítimos interesses da outra e estejam dispostas a transigir. Sim, a paralisação das competições e o estado emocional dos atletas, isolados e a cumprir programas de treino em casa, pode recomendar, na ótica dos clubes, que os atletas gozem agora as suas férias. Sim, os atletas dirão, com toda a razão, que agora, em bom rigor, é impossível gozar férias, no sentido que hoje todos damos às férias, como tempo de evasão, de libertação e de autodisponibilidade pessoal.
A solução terá de assentar no acordo entre as partes, num acordo livre de pressões, esclarecido, ponderado. Quiçá a solução possa ser salomónica, com os jogadores a gozar metade do seu período de férias agora, deixando a outra metade para melhores tempos, para tempos de normalidade, em que possam, realmente, desfrutar das suas férias de forma plena. O que não pode, aqui, é haver soluções impostas, ditadas e unilaterais – mas sim, e só, soluções propostas, negociadas e consensuais.
* Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, especialista em direito laboral desportivo. Artigo originalmente difundido no site http://sjogadores.pt/