Nasci numa aldeia beirã, onde a economia rural daquele tempo era insuficiente para sustentar as famílias numerosas nos anos 50/60 e eu, menino pobre, o segundo duma família de cinco irmãos, já beneficiei do programa de alargamento da obrigatoriedade do ensino primário a quatro anos, mas tendo que me deslocar para a sede da freguesia, percorrendo caminhos e atalhos por cerca de meia hora de caminho, mas, perdendo, o meu pai aos sete anos de idade, vítima da terrível doença da época que o prendeu aos sanatórios nove anos até morrer, desde logo fui forçado a faltar muitas vezes às aulas, para ajudar a minha mãe e o meu irmão, dois anos mais velho do que eu, nos trabalhos rurais.
Por Serafim Marques *
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“Ganharás o pão com o suor do teu rosto” – Sophia de Mello Breyner
A minha mãe, qual “mãe-coragem” a ter que assumir o papel de “mãe e pai” de cinco filhos, todos abaixo dos dez anos de idade, analfabeta – ela sim do tempo em que as raparigas não eram obrigadas a ir à escola, ia pedir ao professor para me dispensar das aulas, porque precisava da minha ajuda em trabalhos que poderiam ser executados por uma criança. Apesar disso, as minhas capacidades permitiram-me concluir os quatros anos de escolaridade obrigatória sem qualquer perda de ano e ser ainda um dos melhores alunos da minha escola. À alegria do exame da 4ª classe, naquele tempo o exame era de âmbito nacional e efetuado em Viseu, logo senti uma tristeza na alma, porque sabia que, para mim, a escola terminava ali, ao contrário de três colegas de classe, cujos pais eram comerciantes, que iriam prosseguir os estudos em Viseu. Além da minha família não ter posses para que eu pudesse ir estudar para a cidade, era ainda necessário começar a trabalhar e ajudar a família, infelizmente amputada do meu pai. A ida para o Seminário, teria sido uma via, mas a minha mãe precisava de mim para “ganhar uns tostões” e não concordava. Com onze anos, sim apenas com onze anos, tive de migrar para o Alentejo, como “ratinho” (ler as minhas crónicas autobiográficas “A Primeira Viagem da Minha Vida” “e “Os Ratinhos da Beira Alta no Alentejo” ou, se quisermos, como escravo e um ano depois trouxeram-me para marçano em Lisboa (ler a crónica “O Caixeiro”), noutro tipo de escravatura, esta melhor do que a rural.
Aqui, o sonho e o desejo de continuar os estudos foi avivado com alguns exemplos de dois ou três jovens que conheci já na capital e que o faziam como trabalhadores-estudantes, isto é, por questões que se prendiam com a falta de capacidade financeira das famílias, só o poderiam fazer nas escolas técnicas noturnas (escolas comerciais ou industriais), existentes naquela altura, pois o liceu noturno não existia. Não desisti do meu sonho, mesmo com um desgosto quando ainda com treze anos me foi recusada a matrícula, porque a regra, para o estudantes-trabalhadores era, ter quatorze anos feitos ou a fazer até ao final do ano (trabalhar e ter a quarta classe) e eu só os faria em janeiro. Depois, já com quinze anos, matriculei-me no primeiro ano do curso Geral de Comércio e tendo de vencer enormes dificuldades, incluindo a financeira, iniciei então uma longa vida de estudante, mas sempre como trabalhador-estudante, até aos trinta e dois anos. Primeiro a escola comercial, com o curso comercial estruturado em seis anos na versão noturna, porque o acesso era feito a partir da quarta classe, curso duma grande riqueza formativa.
Preparava os formandos para a prossecução duma vida profissional habilitadíssimos para o meio empresarial. Foi, por razões que se podem entender, a minha primeira grande vitória, que festejei sozinho, mas olhando para o céu e agradecendo ao meu pai, que partiu nos meus dezasseis anos, por ter sido o meu anjo da guarda e lembrando-me dum conselho seu, na última vez que o vi, numa visita ao sanatório, a sua casa durante cerca de nove anos, tinha eu quatorze anos: “Filho, faz-te homem, porque eu não posso ajudar-te”. Como eu gostaria que ele tivesse visto o meu sucesso, obtido num caminho solitário. Eu que cheguei a ser dado para criado a uma família, na minha aldeia, mas que fugi no final do primeiro dia, tal como fugi do meu primeiro patrão como escravo/marçano em Lisboa (com cama, mesa e roupa lavada), ou que ouvi, em surdina, algumas pessoas sugerirem à minha mãe que nos colocasse num asilo, pois a situação familiar, cinco crianças e sem pai e sem meios, era de extrema pobreza. Que caminhos teria eu seguido, se não me tivesse aventurado na escola comercial? Foi o início de voos mais altos.
Três meses depois, seguiram-se três anos do serviço militar obrigatório, em pleno período crítico da guerra colonial, para a qual, felizmente, não fui mobilizado. A formação escolar obtida até ali já me permitiu ser um militar graduado (Furriel Miliciano), pós a formação militar de seis meses, e poder extrair ensinamentos, na vida militar, que acabaram por ser enriquecedores na minha formação humana. Em termos escolares e apesar da incerteza de “ vai não vai para a guerra colonial”, consegui fazer um ano escolar, para acesso ao grau seguinte de ensino (o antigo Instituto Comercial), nos dois anos e meio que estive no serviço militar no Porto e ali me matriculei , mas logo em outubro de 1974 regressei a Lisboa e ao emprego que deixara aquando do ingresso na tropa, em outubro de 1971, com vinte e uma anos, emprego a que, por lei, poderia regressar, e continuei os estudos no mesmo regime, isto é, trabalhador-estudante. Aos filhos dos pobres, melhor, filhos da classe média, aqueles que, apesar de tudo continuavam os estudos, tinham por destino o ensino técnico e a vida mais difícil na progressão académica, se o quisessem fazer. Depois dum bacharelato (atual licenciatura) em Contabilidade (por extinção dos ICs), seguiu-se um outro curso universitário, este ao nível duma licenciatura (agora chamada Mestrado), em Gestão (OGE) e já pai duma filha e com o filho a nascer uma semana depois da conclusão do curso. Ai, ai se ele tivesse nascido duas ou três semanas antes…
Foi longo e sacrificante (dezassete anos, incluindo os três no serviço militar obrigatório – Out71 a Out74) o meu percurso escolar, mas em cada fase ou etapa, sentia a alegria do sucesso e partia para outro desafio. Aquele tipo de ensino (o tal “ensino dos pobres”, isto é, o mais acessível, mesmo com maiores ou menores dificuldades, mas que os preparava para a vida profissional e não para serem “doutores”) permitia que em cada ciclo se ficasse habilitado para a vida profissional, ao contrário destes quase cinquenta anos de “ensino unificado” pós 25 de Abril, depois que acabaram com o ensino técnico-profissional. Erro grave e que desde há alguns anos, algumas escolas, começaram a ministrar cursos técnico-profissionais e que muitos jovens a eles aderem porque não sentem vocação para a Universidade.
Através deles, consegue-se combater o insucesso escolar no ensino obrigatório (até aos 18 anos ou 12º ano) e já são visíveis os resultados dos novos cursos profissionais a nível secundário, entretanto lançados, por muitas escolas do nosso país, corrigindo-se um erro de cariz político-ideológico e colocando no mercado de trabalho jovens com uma formação técnico teórica. Mas a oferta formativa nesta via, ainda tem “inimigos ideológicos” que a apelidam de segregacionista, esquecendo-se que os formandos no ensino técnico-profissional podem prosseguir os seus estudos na universidade, se assim o desejarem (foi isso que eu fiz, indo até à Universidade). Ousando, como eu fiz e sem recursos e sem base familiar e com sacrifícios inimagináveis, mas dentro de mim estaria uma força de vontade e capacidade de sacrifício que não sei explicar. Talvez uma estrelinha que lá do alto do universo me guiou pela estrada espinhosa e cheia de perigos para uma criança/jovem na cidade grande, mas com um sabor indescritível pelas vitórias que ia conseguindo, passo a passo e grau a grau. Não fui nem serei único e conheci muitos que até começaram bem mais tarde do que eu e o serviço militar obrigatório dessa época acabava por ser uma fonte germinadora de vontades em subir na vida, pela formação, permitindo que os sonhos de outros também pudessem ser os nossos. Conheci muitos exemplos como eu que sou “um homem que nunca foi criança”.
Atingi, assim, uma formação escolar e profissional muito acima da média, mas os sacrifícios pelos quais passei foram enormes e poderiam ter sido diferentes se alguém ou alguma instituição tivesse investido em mim e que eu pagaria depois da conclusão dos estudos. Imagine-se que um benemérito ou um tutor apostasse em mim ou o Estado tivesse “bolsas de estudo”, estas atribuídas aos estudantes verdadeiramente carenciados, e “bolsas de empréstimos financeiros”, estas que seriam reembolsados à medida que, concluída a formação universitária, o estudante financiado começasse a obter os proveitos desse investimento. Talvez esta política evitasse os abandonos no ensino politécnicos e universitário, mas passa também por sensibilizar as famílias, com filhos nessa idade, de que estudar compensa, e não incutirem uma mentalidade subsidio dependência. Não basta a vontade do Estado.
Consegui o que alguns conseguiram, mas por caminhos cheios de espinhos, de sacrifícios e dalgumas resistências. Por exemplo, à minha mãe-coragem, iletrada, fazia confusão a minha persistência nos estudos, perguntando-me por que razão eu não emigrava, em vez de estudar, porque nas férias que eu ia passar â aldeia, ela via que a minha geração exibia “francos franceses” ou “marcos alemães”, enquanto eu tinha alguns míseros escudos no bolso e passava muitas privações. Não foi apenas a minha mãe que tentou dissuadir-me. Mas valeu a pena e o gozo/prazer que obtive, e que usufruirei até morrer, bem como os proveitos conseguidos, e só quem fez este caminho, mesmo nos tempos atuais, saberá dar o verdadeiro valor. Estudar compensa, mas não chega ostentar os diplomas obtidos. Por vezes, olho para os meus três diplomas destes ciclos de formação (sinto pena de não possuir o emblemático diploma da 4ª classe) e, sem falsas modéstias, penso: “Como foi possível, eu, um deserdado da vida à nascença atingir o topo”. A minha vida foi como subir uma montanha, desde o sopé até ao cume. O que teria sido ela, se não tivesse lutado contra o destino? Paguei caro com a saúde.
Confesso que me incomoda saber que muitos jovens, cujas dificuldades não são comparáveis com aquelas que eu senti, (“eu comi o pão que o diabo amassou” e passei muitas privações), desistem dos estudos e não é porque as propinas universitárias são diferentes das do meu tempo que, em 24 de Abril de…1974 foram fixadas em 1.200$00 (cerca de seis euros) e se mantiveram muitos anos nesse valor… Outros tempos, mas também outras mentalidades. Por isso, é fundamental que o Ministério da Educação crie mecanismos de apoio, para que nenhum jovem deixe de continuar os estudos ou seja obrigado a interromper a sua formação escolar por dificuldades familiares. É necessário, em primeiro lugar, sensibilizar os próprios, mas acima de tudo a respetiva família, porque este começa por ser um problema do agregado familiar. “Estudar, para quê?”, dizem muitos familiares de jovens. Também eu, aos treze anos e seguintes até aos 26/27 anos, ouvia isso. Desde há muito, quando interajo com jovens, que lhes digo e aconselho, incentivando-os: “se eu consegui, tu podes conseguir também, porque eu fui como tu és”.
* Economista (Reformado).
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