“Estamos exaustos e receosos”

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Assistência médica (Foto divulgada pela FNAM / Facebook).

Estamos certos que tem acompanhado a situação no Serviço Nacional de Saúde (SNS), onde, dia após dia, se acumulam situações inaceitáveis, inimagináveis até há bem pouco tempo, e que têm resultado na limitação da nossa capacidade de exercer a profissão com dignidade e excelência. Tem resultado também, demasiadas vezes, na suspensão temporária de alguns serviços.

Carta aberta ao Senhor Presidente da República Portuguesa,

Por Joana Bordalo e Sá *

Nós, médicos e médicas deste país, estamos exaustos e receosos de que o processo atualmente em curso de deterioração do SNS venha a ser irreversível. Após uma formação de reconhecida qualidade e exigência, verificamos que, atualmente, os médicos internos representam um terço dos médicos disponíveis no SNS, sendo-lhes depositada uma responsabilidade excessiva para um período que deve ser sobretudo dedicado à sua formação. Um período muito mal remunerado, que nem sequer é reconhecido como o primeiro grau da carreira médica. Ultrapassado o internato, o serviço público e a dedicação aos doentes e utentes mantêm-se marcados por obstáculos e dificuldades. Não os obstáculos e dificuldades que nos são colocados pela doença, que esses estamos qualificados para enfrentar, mas aqueles que são colocados por décadas de desinvestimento no SNS, onde a realidade laboral é de tal maneira inóspita, sob tantos pontos de vista, que são cada vez menos aqueles que resistem ao exílio para o sector privado ou para o estrangeiro, desqualificando o SNS e o país da mão de obra que especializamos e formamos coletivamente.

No serviço público espera-nos uma realidade que nos obriga ao cumprimento de horas extraordinárias excessivas, onde as escalas são uma manta de retalho de profissionais abnegados, mas em permanente luta contra a exaustão. Esperam-nos administrações hospitalares para quem a lógica economicista fala mais alto do que o juramento de Hipócrates, garroteando o ato médico de critérios que não servem os utentes.

Não nos cansamos de repetir: não há falta de médicos em Portugal, há falta de médicos no SNS. O Ministério da Saúde pode tentar tapar o sol com várias peneiras – desde a contratação de médicos recrutados no estrangeiro, ou de médicos já reformados, até à tentativa de legislar para dobrar o número já abusivo de horas extraordinárias que os médicos fazem todos os anos –, mas já não é possível esconder a solução evidente: é urgente contratar mais médicos, o que apenas será possível garantindo à carreira médica a dignidade e a valorização necessária para que os médicos e as médicas a queiram fazer ao serviço da saúde pública.

Estamos certos que tem acompanhado as negociações com o Ministério da Saúde, onde, ao cabo de 15 meses, o Dr. Manuel Pizarro foi incapaz de produzir um acordo competente para os desafios que o SNS enfrenta. Estamos certos que, por ser Presidente da República, mas também constitucionalista, nunca aceitará que os médicos sejam obrigados a fazer economia no ato médico, dos exames à terapêutica, como critério para verem majorado o seu vencimento.

O que é pretendido implementar é uma lógica em que os médicos, para serem fiéis à sua profissão, estão obrigados a financiar, indiretamente, a sua própria atividade. Um crime simultaneamente cometido contra os médicos, os utentes e o Estado de Direito. Temos lutado para chamar o Governo à razão, colocar um ponto final no seu radicalismo e na sua intransigência, mas nada parece fazer cessar a teimosia. Estivemos em greve em março, em julho e em agosto, com a intenção de mostrar que o SNS está neste momento refém da incompetência e má-fé do Ministério da Saúde.

Recordamos que os salários dos médicos estão congelados há 12 anos, desde a intervenção da troika, e que estamos entre os mais mal pagos da Europa. Lembramos que, apesar disso, mantemos serviços de saúde com reconhecidos elevados padrões de qualidade e distinção, não porque nos sejam dadas condições, mas porque somos apaixonados pela nossa profissão, porque temos um compromisso para com os nossos doentes e o SNS, mas também porque temos um compromisso para connosco e com as nossas famílias de termos uma vida digna, uma sociedade justa e melhor. Se fazemos bem sem condições, imaginemos o que conseguiremos fazer quando as condições estiverem garantidas.

O SNS foi dos maiores avanços civilizacionais da democracia portuguesa, por ter consagrado o direito à proteção da saúde, à prestação de cuidados globais de saúde e o acesso a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social. O seu desmantelamento, executado a pretexto da mentira das «contas certas», deixou o SNS mais «incerto» que nunca. Queremos estar no SNS, mas não queremos, nem os utentes merecem, um SNS de serviços mínimos, que serve apenas de plataforma de formação para que depois rendamos milhões ao sector privado ou que seja para servir as populações de outros países.

Há, atualmente, 1.7 milhões de cidadãos em Portugal sem médico de família e ao invés de aumentar as contratações, o Governo propõe um modelo «uberizado» de Saúde, tão barato quanto lhe seja possível, castigando os nossos vencimentos quando pedirmos exames, analises e prescrevemos as receitas que os doentes precisam. As listas de espera para consultas de especialidade e cirurgia são cada vez maiores nos hospitais, mas o Governo obriga os médicos a fazer 18 horas de urgência, onde não sobra tempo para fazer as consultas e as cirurgias que se acumulam. Pela vontade do Governo, os doentes vão continuar a ser vistos por médicos exaustos e em burnout, com mais quatro meses de trabalho em tempo suplementar que os demais profissionais, com semanas de 40 horas de trabalho em vez de 35, com 300 horas extraordinárias em vez de 150, sem descansos compensatórios assegurados depois do trabalho noturno, e dias de trabalho de 9 horas.

Senhor Presidente da República, os médicos querem um acordo célere e por isso sugerimos ao Governo que nomeie um mediador independente, capaz de dar às negociações o pragmatismo que o SNS precisa e não tem mais tempo. Esta carta aberta, e o pedido de audiência que a acompanha, não pretende sugerir que seja o Senhor Presidente o mediador – sabemos que não é essa a sua função, nem a Saúde o seu campo de conhecimento –, mas pedimos que reforce, ao lado dos médicos, ao nosso lado, essa sugestão ao senhor Primeiro-Ministro.

O SNS já não tem tempo para ficar à espera de bom senso, confiamos em si para que o imponha antes que seja tarde demais para salvar o SNS. O carinho pelos serviços públicos, pilares da sociedade e do Estado Social, tem na Saúde uma das suas traves-mestras. Contamos consigo para que o país não continue à espera de um tempo que se está a esgotar, para garantir que vale a pena ser médico em Portugal e que a saúde continua a ser um dos motivos que, como sociedade, nos tranquiliza e nos orgulha. O SNS não pode esperar!

* Federação Nacional dos Médicos, presidente da Comissão Executiva.

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