Às pessoas da minha geração (nasci em 1936), os professores falavam dos espanhóis como sendo os nossos inimigos ancestrais, das garras de quem tínhamos sido libertados por D. Afonso Henriques, mas que, durante séculos, nunca tinham deixado de nos tentar reconquistar, só o tendo conseguido, habilidosa e temporariamente, uma única vez, através de uma sucessão real, mas nunca pela força das armas, se bem que o tivessem tentado várias vezes.
Por Diamantino Dias *
Isto reflectia-se nalguns dos nossos jogos de guerra infantis, porque os bandidos, quando metia espadeirada, eram os espanhóis e a rapaziada ia-se a eles, gritando: “mata que é espanhol”. Nas “coboiadas”, este papel era desempenhado pelos índios, esses malandros, que os brancos invasores expulsaram das suas terras, tentaram impingir-lhes uma civilização e uma religião que eles não queriam e, ainda por cima, acabaram por lhes atribuir, mais tarde, os papéis de maus da fita.
No que me respeita, só comecei a contactar com espanhóis, quando entrei para os Serviços Municipais de Turismo (Outubro de 1957), primeiro no Posto de Informações e, mais tarde, nas visitas anuais com os hoteleiros aos Agentes de Viagens das principais cidades da Galiza, seguindo-se a participação em acções promocionais levadas a efeito pela Direcção Geral do Turismo, em algumas das mais importantes cidades do país vizinho: Salamanca, Valladolid, Burgos, Bilbau, San Sebastian, Barcelona, Valência, Sevilla e Madrid. Por exemplo, nesta última, participei na FITUR (Feira Internacional de Turismo), que se realizava na última semana de Janeiro, durante doze anos, ou seja, permaneci, na capital, perto de cinquenta dias. Com este exemplo, não quero dizer que conheço bem o país vizinho, porque, na Espanha turística, nunca estive, sempre que atravessei esta fronteira foi para trabalhar, mas que sei quem são os espanhóis. O que me permite dizer que constatei, entre outras coisas, que há espanhóis que gostam menos de outros seus compatriotas, por exemplo, os catalães e os bascos dos madrilenos, do que muita gente do meu tempo gostava dos nossos vizinhos.
Todos estes contactos fizeram com que eu ficasse a gostar de Espanha e dos “nuestros hermanos”. Assim, no passado dia 2 de Junho, quando me preparava para assistir, na TV, ao España vs Portugal, integrado na Liga das Nações, disputado no Estádio Benito Villamarín, em Sevilla, fiquei chocado e triste ao ouvir milhares de espanhóis vaiarem o Hino Nacional, com uma monumental assobiadela. Curiosamente, não considerei esta vaia uma manifestação antiportuguesa por parte dos espanhóis, mas uma atitude típica das actuais tribos do futebol que não só têm vindo a ser infiltradas por elementos pouco recomendáveis, mas também onde há pessoas que, socialmente, têm uma conduta normal, porém, quando vão assistir a jogos da sua equipa, se comportam de forma muito pouco civilizada. E o que eu disse no que respeita às assistências do futebol, tem-se vindo a tornar extensível às claques de muitas das modalidades, dantes chamadas amadoras, e, hoje, altamente profissionalizadas. Todavia, mesmo assim, mau grado pensar que não se tratou de uma manifestação contra Portugal, mas tão só contra uma equipa adversária, julgo que vaiar o Hino de um País, ainda por cima amigo, ultrapassa os limites da má educação. É baixo, rasca, ordinário, e isto para só utilizar adjectivos publicáveis.
Este facto lamentável trouxe-me à memória um caso idêntico, passado comigo, o qual passo a narrar. Quando a lista de que eu fazia parte perdeu a eleição, por um voto, para a Comissão Executiva da Região de Turismo da Rota da Luz, terminei a minha comissão de serviço nessa entidade e voltei a ocupar o meu lugar de Técnico Superior Assessor Principal, na Câmara Municipal de Aveiro. Como no município não havia tarefas para me atribuir, no sector do Turismo, onde eu sempre tinha trabalhado, o Presidente, Dr. Girão Pereira, entendeu, talvez por eu me fazer entender em quatro línguas, incumbir-me de desempenhar várias tarefas no campo das Relações Internacionais, a primeira das quais consistiu em congeminar, propor e organizar os “Jogos Desportivos Luso-Espanhóis”, tarefa que tinha sido atribuída à CMA, pela “MESA PERMANENTE LUSO-ESPANHOLA — UM CAMINHO PARA A EUROPA”.
Esta entidade pretendia, numa primeira fase, transformar as centenas de curvas da estrada entre Aveiro e Vilar Formoso, em rectas que permitissem que essa via viesse a ser um Itinerário Principal, o que se veio a conseguir (IP5) e, numa segunda fase, avançar para uma autoestrada, a actual A25. No que respeita a Espanha, a pretensão era fazer chegar a Autovia de Castilla, que terminava em Burgos, até à fronteira. Na última reunião em que estive, em Valladolid, ouvi o Governador da Província dizer que isso teria sido aprovado.
Os Jogos destinavam-se a jovens com um máximo de 15 anos, feitos até Janeiro, e disputaram-se nas seguintes modalidades: andebol, atletismo de estrada (masculino e feminino), basquetebol (masculino e feminino), futebol e natação (masculina e feminina). No meu tempo, os primeiros realizaram-se em Aveiro, os segundos em Salamanca, os terceiros em Viseu e os quartos na Guarda, tendo participado equipas representativas do “IP5 LITORAL”, Aveiro, Viseu, Guarda e Salamanca. Aveiro venceu todas as edições.
Em Viseu, a equipa de Basquetebol de Aveiro era muito forte, tendo-se sagrado campeã nacional na respectiva categoria federativa. Só para dar uma ideia da capacidade física daqueles rapazes de 14 e 15 anos, darei dois exemplos: um dos jogadores tinha 2,03 m e outro 2,02 m; num dos exercícios de aquecimento, todos se penduravam com uma mão no cesto e metiam a bola com a outra. Para quem não sabe, o cesto está a 3,05 m; no meu tempo de basquetebolista, eram muito poucos os jogadores que tocavam no cesto.
No sorteio, calhou-nos, no primeiro jogo, a equipa de Salamanca, que, ao contrário do habitual, era fraca, pelo que o resultado se começou a desnivelar muito rapidamente. E o que é que veio a acontecer? Os jovens, que enchiam o pavilhão, começaram a entoar uma lenga-lenga, em que os espanhóis iam para um sítio que eu não digo.
Fui falar com o Vereador da Câmara de Viseu, creio que veio a ser Presidente e que terá falecido há pouco tempo, e disse-lhe que o que se estava a passar era contrário à ideia que tinha levado à realização dos Jogos Luso-Espanhóis, com os quais se pretendia criar e fortalecer laços de amizade e cooperação entre os dois países, pelo que sugeria que, ao intervalo, ele se dirigisse, através da instalação sonora, à assistência e dissesse o que entendesse por conveniente para acabar com aquele palavreado. Disse-lhe mais que, caso a situação se mantivesse, a equipa de Aveiro não entraria em campo para a segunda parte. O vereador teve êxito na sua intervenção, pelo que tudo acabou normalmente.
Note-se que isto se passou nos anos oitenta, quando ainda não havia telemóveis, por isso, tive de tomar essa decisão, pessoalmente, sem poder comunicar com ninguém da edilidade aveirense. E se o Vereador viseense não tivesse concordado comigo e a nossa equipa não reentrasse para a segunda parte, isso poderia vir a ter tido repercussões políticas. E eu não passava de um mero funcionário.
Este texto foi escrito de acordo com o Antigo Acordo Ortográfico.
* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)
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