Por viver num país que não cessa de nos surpreender negativamente, e também por algum viés profissional, sinto-me demasiadas vezes como o antecipador das más notícias, o arauto não dos amanhãs que cantam, mas dos amanhãs que choram. Se calhar, por isso mesmo, tenho um certo receio que a conjugação de sinais algo dispersos que leio me transmita, nesta altura e erradamente, algum sentimento de optimismo.
Por Pedro Pimentel *
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É certo que vamos enfrentar a reversão do IVA 0% logo no primeiro dia do ano. É certo que vamos enfrentar dois actos eleitorais sucessivos, o primeiro dos quais – as legislativas antecipadas de Março – nos pode conduzir a um beco de difícil saída ou à construção de soluções governativas pouco amigas de um mercado fluido, inovador e competitivo. É certo que estamos a ser confrontados com dois conflitos bélicos, longe de estarem resolvidos, e com grande impacto geoestratégico, mas também económico. É certo que as projecções apontam para uma desaceleração do crescimento económico, pressionado pela quebra da procura externa. É ainda certo que a regressão da inflação vai tornar bastante mais visível o impacto das quebras de vendas, em volume, de muitos produtos do universo FMCG.
Mas é, igualmente, certo que, muito mais rapidamente do que se previa, a crise inflacionista vai sendo ultrapassada. É igualmente certo que a escalada das taxas de juros parece ter sido contida e poderá haver uma descida de taxas lá mais para a segunda metade do ano. E parece certo que, já no segundo semestre de 2024, começaremos a ter sinais bastante nítidos de recuperação nas mais importantes economias mundiais, motores de crescimento e fundamentais para a redinamização das nossas exportações e reaceleração de emissões, especialmente europeias, a nível de turismo.
Assim, tenho a expectativa de que, ao contrário de uma frase que se vulgarizou há quase uma década atrás, Portugal poderá não estar economicamente melhor, mas as famílias portuguesas poderão sentir alguma melhoria no seu dia-a-dia. E isso terá, muito provavelmente, um impacto positivo no mercado nacional na área do grande consumo.
Por tudo isto, este deverá ser o momento de guardar no armário a casca de ovo do Calimero e ultrapassar esta letargia que nos faz, por vezes, baixar os braços e atirar para cima da incerteza, da volatilidade e do contexto económico as culpas das nossas indecisões e inacções. Afinal, é assim o nosso mundo e é nele que temos de saber viver.
De forma telegráfica, deixo dez sementes que podem fazer germinar este sentimento de optimismo, ainda que algo envergonhado:
Ansiedade mais controlada
Depois de meses em que o tema da inflação e, especialmente, da inflação no universo FMCG, era motivo de notícias diárias e tópico de todas as conversas, o consumidor parece ter-se progressivamente adaptado a este novo contexto e começa a regressar, ainda lentamente, a padrões de compra anteriores, com desaceleração do número de visitas às lojas, aumento da cesta a cada ida às compras e, neste último trimestre, uma menor quebra de vendas em volume.
Poder de compra com evolução positiva
Se em 2022 e 2023 a inflação e a fiscalidade “comeram” amplamente os envergonhados crescimentos salariais e se o aumento das taxas de juros penalizou o orçamento disponível de muitas famílias, prejudicando fortemente o poder de compra, em 2024, poderá haver uma reversão, ainda que parcial, dessa quebra, com a inflação a aproximar-se dos valores pré-pandemia, crescimentos salariais bastante mais robustos, alguns ganhos ao nível de fiscalidade directa (em sede de IRS) e um muito provável retrocesso das taxas de juro, a partir de meados do próximo ano, permitindo alguma recuperação do poder de compra.
Turismo como âncora
Se a recuperação ultrapassou mesmo as expectativas mais optimistas que vinham do pós-pandemia, 2024, até por força dos conflitos no Leste e no Médio Oriente, pode tornar Portugal como um destino turístico ainda mais atractivo, com a distância às zonas bélicas, a segurança e a menor exposição política internacional a funcionarem como argumentos favoráveis. A própria recuperação das maiores economias europeias pode fazer crescer o número de turistas proveniente destes mercados, com forte impacto no universo FMCG, seja através das compras directas no retalho, seja pela sustentação dos negócios a nível de hotelaria e restauração.
Recuperação do valor como foco prioritário
Após um período bastante largo, em que a inflação e as dificuldades do consumidor empurraram retalhistas e marcas para as soluções que melhor respondiam a uma carteira mais curta de muitas famílias, alguma recuperação de poder de compra tornará o consumidor mais exigente, mais atento a uma oferta diversificada, mais apetente à inovação, mais atraído para propostas que lhe ofereçam maior valor. Depois da resposta à ansiedade da crise inflacionista, o mercado – sejam as marcas ou os retalhistas – terá de ser capaz de melhorar sortido e valor, suportado em inovação, relevância e experiência de compra.
Retalho em significativa mutação
A chegada da Mercadona à Grande Lisboa e a comunicação da aquisição do DIA/Minipreço pela Auchan marcaram o ano de 2023 na área do retalho. Menos atenção mediática (mas não menor importância) foi dada às oscilações do peso de mercado dos grandes operadores no território nacional. Para 2024, para lá da progressiva tomada de controlo das lojas Minipreço pela Auchan, poderá assistir-se a um regresso dos consumidores aos espaços de maior oferta e com propostas de maior valor e, por outro lado, a uma maior saturação em relação à rotina de compra em modelos com menor diversidade. É ainda expectável que o crescimento da “mancha de azeite” da espanhola Mercadona, continuando, se torne menos exuberante, à medida que as novas aberturas ocorram ou em zonas de menor densidade populacional ou em zonas que contribuam para alguma canibalização inter-lojas.
Melhoria da eficiência operacional
Melhorar a oferta, neste novo período, não poderá passar apenas por exercícios de redução de sortido e de facilitação da operação. Toda a cadeia de abastecimento terá de se tornar mais resiliente e melhorar a sua eficiência, apostando na respectiva digitalização e automatização e no recurso às possibilidades oferecidas pela inteligência artificial generativa, seja nas operações ao longo da cadeia, seja na personalização da relação com o consumidor. Esta é uma necessidade acrescida em face da escassez de recursos (por exemplo, a nível de mão-de-obra) que é cada vez mais sentida. Fazer mais e melhor com menos recursos é o caminho a traçar, apenas possível com a ajuda de tecnologia adequada, bem estruturada e melhor implementada.
Ultrapassar a banalização de pricing e promoção
A crise inflacionista que vivemos nos dois últimos anos subverteu muitos paradigmas ao nível de pricing e promoção. E se é certo que os consumidores não cessam de referir que procuram os produtos mais económicos ou se as suas cestas de compras contêm uma ampla parcela de produtos comprados numa qualquer forma de promoção, na verdade, hoje é cada vez mais complexo definir price points adequados ou obter verdadeiros efeitos multiplicadores de vendas a partir de acções promocionais mais ou menos standardizadas. Isso significa, muito provavelmente, fazer promoções mais cirúrgicas, mais personalizadas, capazes de captar a atenção através de outros factores para além do preço. E, se assim for, também a estrutura dos preços normais de prateleira pode ter uma diferente evolução, tornando a compra fora de promoção mais atractiva, beneficiando, também por esta via, o próprio consumidor.
Recuperar espaço no linear e a atenção do consumidor
Um maior foco, em todos os formatos de retalho, relativamente a diversidade, inovação, experiência de compra ou valor, como forma de fidelizar o consumidor, mas atrair também novos consumidores, e como forma de obter uma melhor equação de rentabilidade, é importante para todos os operadores e é importante para as marcas e os shoppers. Se é verdade que todas as marcas estão a lutar para recuperar espaço para os seus produtos e para conseguir captar a atenção do consumidor, é também verdade que esse investimento e esforço obterão poucos resultados se não contarem com a abertura e colaboração dos próprios retalhistas, seja na gestão dos lineares e no espaço consignado para cada marca (incluindo, obviamente, as suas próprias) e se induzem, ou não, diferenciais excessivos nos preços praticados entre as suas marcas e as restantes. Acredito que, nos próximos meses, se assistirá a um reequilíbrio entre marcas e a um esforço de vários retalhistas de ampliar a sua oferta e se focar, de forma menos obsessiva, nas suas próprias marcas.
Dar melhor resposta aos desígnios da sociedade
De forma progressiva, as nossas compras deixam de ser um mero acto de resposta às necessidades que pretendemos satisfazer, para se tornarem também um acto de consciência social e ambiental e passamos a expressar, cada vez mais, os nossos valores, anseios e exigências através dos produtos que adquirimos. Se estamos rodeados de focos de activismo, com que, muitas vezes, discordamos do fundamentalismo, não deixamos, por isso, de ter uma preocupação crescente com temas como o desperdício alimentar (e não só), com os impactos ambientais do nosso consumo ou com a saúde e o bem-estar (nosso e dos que nos rodeiam). O esforço que muitas marcas e muitos retalhistas fazem hoje para, mesmo antes de quaisquer imposições legais, dar resposta positiva aos anseios dos consumidores e aos desígnios da sociedade irá ser paulatinamente premiado e os cidadãos sentirão que, com a ajuda de marcas e retalhistas, também poderão cumprir a sua parte.
Cocriar um melhor futuro para os consumidores e com os consumidores
Ter o consumidor no centro de todas as decisões ou afirmar que apenas a cooperação entre todos os elos da cadeia permite a melhor entrega de qualidade, experiência e valor ao consumidor são, hoje, muito mais do que meros chavões. Um consumidor que quer ver as suas necessidades satisfeitas, mas que valoriza aqueles que antecipam e dão resposta a necessidades que apenas mais tarde reconhecerá. Um consumidor que quer ser mimado e surpreendido. Um consumidor que, de facto, e com as suas compras diárias, suporta e alimenta o esforço, o investimento e a rentabilidade de toda a fileira. Por isso, será de apostar fortemente em soluções que resolvam as interrogações (actuais e futuras) do consumidor e o seu sucesso será tanto maior quanto mais ele for envolvido na respectiva concepção e desenvolvimento.
Que 2024 seja, pois, um ano de inversão de ciclo, um ano de recuperação e de sucesso para o universo FMCG e para os consumidores para os quais diariamente trabalhamos.
* Diretor geral Centromarca. Este artigo foi publicado originalmente na edição N.º 84 da Grande Consumo.
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