Alguém escreveu que governar é um acto de gerir a desilusão. Na verdade, a gestão política faz com que fiquemos muitas vezes aquém dos nossos sonhos e projectos. Há dinâmicas que nos surpreendem, tácticas que nos travam o ritmo, prioridades que nos desarmam, pragmatismo que nos desaponta. O poder não é sempre eficiente.
Por Alberto Souto de Miranda *
Durante um ano e sete meses (de 18 de Fevereiro de 2019 a 17 de Setembro de 2020), tive o privilégio de integrar o Governo de Portugal e de partilhar, por dentro, as responsabilidades desse poder dignificante de decidir o melhor para o país.
Nas áreas que me estavam cometidas (as comunicações electrónicas e postais, a aeronáutica e, a partir do XXII Governo, igualmente os portos), bem como na acção política mais geral (na qualidade de Secretário de Estado Adjunto, substituía, algumas vezes, o Ministro em Conselhos de Ministros e participava nas reuniões semanais de Secretários de Estado), procurei sempre enobrecer a política e prestigiar o exercício dela, amiúde deslustrado e dado a tratos de polé ético, desses que alimentam os caluniadores da democracia.
É ainda cedo para um balanço do que logrei concretizar. Este livrinho, sendo repositório para arquivo, não pretende, por isso, reportar toda a minha acção governativa – certamente modesta e circunscrita – ou constituir relato de todas as diligências, despachos, orientações, actos normativos, acção representativa interna ou externa, mais ou menos mediática, quase sempre discreta.
Os dois Governos viveram circunstâncias totalmente atípicas na História da democracia, se não na de Portugal: o primeiro, registando um virtuoso excedente orçamental que balanceava Portugal para a redução da sua dívida externa e para uma economia interna de desenvolvimento e bem estar acrescido. O segundo, obrigado a lidar com uma pandemia destruidora de vidas e da economia, que paralisou o País e continua a pôr à prova o nosso sistema nacional de saúde e a interpelar a nossa civilidade e formas de nos organizarmos como comunidade.
Nas minhas áreas, passámos da gestão de excesso de passageiros nos aeroportos e da premência da construção do novo aeroporto do Montijo, para o deserto dos terminais e as incertezas da aviação mundial. Foram, depois, meses de quase total absorção ao combate à propagação da Covid 19: desde as medidas de controlo sanitário nos aeroportos e nos portos, às necessidades dos operadores de telecomunicações, com o incremento do teletrabalho e videoconferências nas diferentes plataformas, passando pela distribuição postal afectada, pelos paquetes de cruzeiro suspensos, até à quinta geração de comunicações móveis adiada.
Um dia se fará a história deste período aziago. Ficaram, para a “petite histoire”, reuniões de Secretários de Estado por plataformas telemáticas fixas ou no telemóvel e Conselhos de Ministros de máscara, no Palácio da Ajuda, múltiplas adaptações no trabalho político e no despacho corrente, Conselho de Ministros Europeu a partir do meu “gabinete” na Costa Nova, Conselho Superior de Defesa Nacional sob a presidência de Marcelo Rebelo de Sousa, presenciais e a partir de algures…
Alguém escreveu que governar é um acto de gerir a desilusão. Na verdade, a gestão política faz com que fiquemos muitas vezes aquém dos nossos sonhos e projectos. Há dinâmicas que nos surpreendem, tácticas que nos travam o ritmo, prioridades que nos desarmam, pragmatismo que nos desaponta. O poder não é sempre eficiente. Mas o poder democrático tem de condescender com os tempos próprios de muitos parceiros, com a instrução de processos por uma administração pública desprovida de quadros qualificados, com a arbitragem de interesses vários, com a intervenção de múltiplas entidades, mais ou menos independentes. Tudo isso introduz delongas. É, porém, um baixo custo para podermos beneficiar desse bem maior que é termos uma sociedade participativa e exigente e escrutinadora dos seus governos.
Estar no Governo depende da avaliação de circunstâncias pessoais e políticas. Em resultado dessa avaliação política, entendi que não podia continuar e solicitei ao Sr. Ministro Pedro Nuno Santos que aceitasse a minha exoneração.
Nas três áreas que tutelei, espero, porém, que alguns processos que desencadeei ainda se venham a concretizar. Nas comunicações eletrónicas, o leilão de atribuição de frequências para o 5G (definida que foi a Estratégia Nacional pela Resolução do Conselho de Ministros, de 7 de Fevereiro de 2020), o reforço da cobertura da rede 4G, o novo Código das Comunicações Electrónicas e o novo âmbito do serviço universal, a tarifa social da internet ou o novo sistema de cabos submarinos até à Madeira e aos Açores. Nas postais, o novo Contrato de Concessão. Na aeronáutica, o novo aeroporto do Montijo, a melhoria dos terminais em Lisboa, as novas torres de controlo na Madeira e no aeroporto Humberto Delgado, a deslocação da Força Aérea para Beja e a rede de heliportos hospitalares. Nos portos, o aprofundamento da estratégia de melhoria das acessibilidades marítimas e terrestres, ferroviárias ou rodoviárias, da descarbonização e da digitalização.
Em todos eles procurei sempre defender o interesse público o melhor que soube, de forma intelectualmente séria e eticamente íntegra, tecnicamente informada e politicamente fundamentada. Mas não há decisões políticas bacteriologicamente puras. Inevitavelmente, afrontam-se alguns interesses e rotinas instaladas.
* Resumo do prólogo do livro “Do Tempo do Governo” com intervenções na qualidade de membro do XXI e do XXII Governos constitucionais, enquanto Secretário de Estado Adjunto e das Comunicações do Ministro das Infraestruturas, Pedro Nuno Santos, sendo Primeiro Ministro António Costa.