De pequenino se torce… o menino

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Bandeiras de Portugal e Espanha.

Os meses foram passando, o padre Lusitano foi tentando habituar-se a ouvir castelhano, acabando, até, graças à sua boa memória e não porque fizesse qualquer esforço nesse sentido, por entender, razoavelmente, a língua invasora; consequentemente, as relações com os seus paroquianos foram-se normalizando.

Por Diamantino Dias *

O padre Lusitano tinha nascido numa pequena póvoa piscatória, onde os vizinhos não eram vistos como os “nuestros hermanos”, mas, bem pelo contrário, como os concorrentes que, dispondo de barcos a motor, invadiam, à socapa, os pesqueiros dos portugueses que não podiam responder rapinando os deles, porquanto as suas embarcações só eram propulsionadas a remos, logo, não podiam ir tão longe, nem sequer fugir às rápidas lanchas da fiscalização marítima espanhola, caso o tentassem. Assim, a designação usada, a nível nacional, para os nossos vizinhos, naquela aldeia, era substituída por outras, das quais só me atrevo a mencionar ladrões e bandidos.

Nesta conformidade, o menino, que viria a ser o senhor padre Lusitano, foi criado num ambiente de ódio ao espanhol, sentimento esse que veio a ser incrementado pelo seu professor primário, cuja mulher o tinha traído com um habitante de Vigo. Dado que a sua memória lhe tinha permitido ser um dos melhores alunos da escola, feita a 4.ª classe, o padre da freguesia perguntou aos pais se queriam que o rapaz fosse para o Seminário, e eles, não tendo possibilidades de o fazer continuar para o ensino secundário, aceitaram e agradeceram. Por incrível que pareça, no Seminário, o professor de História tinha apresentado como tese, no final do curso, um trabalho sobre as desavenças entre a Igreja portuguesa e a Igreja espanhola, cujas conclusões eram, na sua quase totalidade, favoráveis a Portugal.

Ora, com estes antecedentes, o que é que acabaria por acontecer ao padre Lusitano? Com sessenta e muitos anos, foi-lhe atribuída uma paróquia fronteiriça, porém, na raia seca, o que não lhe agradou, minimamente, em função da vizinhança. Moveu influências, mas foram em em vão. E, quando lá chegou e se começou a instalar, a surpresa, o desagrado e o mal estar começaram a aumentar, dia a dia, tornando-se quase insuportáveis. Então não é que, fosse onde fosse, ouvia falar espanhol?! E não eram só os espanhóis… até os próprios portugueses! “Meu Deus! Que mal Te fiz eu para Me inflingires este castigo?”. Eram estas as suas primeiras palavras diárias, após se benzer perante o Cristo Crucificado do altar mor.

Após dias e noites em branco a matutar nas boas relações generalizadas entre portugueses e espanhóis — fenómeno social que, para si, constituía algo de incompreensível –, concluiu que os nossos vizinhos estariam a pôr em prática um plano maquiavélico que passaria por uma primeira fase de boa vizinhança, mas à qual se seguiria uma outra em que os portugueses seriam vítimas de uma grande vigarice. Nesta conformidade, entendeu que, para além das funções de guia espiritual, deveria, também, alertar os seus paroquianos para os perigos que poderiam correr se continuassem a manter tão estreitas e frequentes relações com gentes que não seriam merecedoras de grande crédito.

Assim, terminou uma homilia dominical, com a seguinte advertência:

— Irmãos e irmãs, sou novo nesta paróquia, mas já não posso fazer a mesma afirmação no que respeita à vida, porquanto já vou a caminho dos setenta. Nasci numa pequena aldeia de pescadores, junto à fronteira, e tenho dedicado muito tempo ao estudo das relações entre Portugal e Espanha. A experiência de vida e os estudos efectuados levaram-me a uma conclusão que me sinto no dever de vos transmitir: os espanhóis nunca nos deram nada desinteressadamente; esperam sempre que isso lhes propicie um lucro muito superior.

Estas palavras desagradaram, generalizada e profundamente, aos paroquianos que as fizeram chegar, de imediato, ao Bispo. A autoridade diocesana convocou o padre para uma reunião, no Paço Episcopal, tendo o Prelado começado por lhe dizer:

— Padre Lusitano, então o senhor, durante a sua homilia de domingo, afirmou que os espanhóis são interesseiros e desonestos!

— Senhor Bispo, baseado na minha experiência e nos estudos que tenho vindo a efectuar, creio, convictamente, que os espanhóis não são pessoas de bem; logo, pensei que era meu dever avisar a boa gente da minha paróquia do perigo que anda a correr convivendo e negociando com eles.

— Padre Lusitano, então você vai dizer isso numa terra onde não só as relações entre os dois povos são excelentes, mas também é quase impossível encontrar uma família que não tenha elementos dos dois lados da fronteira!

— Senhor Bispo, isso é capaz de ser uma táctica deles para se irem infiltrando no nosso País e acabarem, ao longo dos tempos, por tomarem conta disto, o que nunca conseguiram pelas armas, mau grado o tenham tentado em 1385, sem êxito, pois a eles se opuseram homens da têmpera de D. João I e, principalmente, de Nuno Álvares Pereira…

— Padre Lusitano, já lá vão mais de seis séculos sobre essas pretensões..

— E 1580?

— Padre Lusitano, não me interrompa, os tempos são outros e meta na cabeça que os seus paroquianos têm muitos amigos sinceros, bons e desinteressados entre os “nuestros hermanos”. E, agora, volte para casa e não quero voltar a vê-lo, aqui, por igual motivo. Vá com Deus.

Os meses foram passando, o padre Lusitano foi tentando habituar-se a ouvir castelhano, acabando, até, graças à sua boa memória e não porque fizesse qualquer esforço nesse sentido, por entender, razoavelmente, a língua invasora; consequentemente, as relações com os seus paroquianos foram-se normalizando. Até que, num 25 de Dezembro, quando o sacerdote falava sobre o nascimento de Jesus, num fim de manhã em que uma grande tempestade, assolava a vila, uma rajada mais violenta trouxe consigo um ramo que estilhaçou o vitral do lado da Epístola, provocando um grande estardalhaço e, consequentemente, não menor susto entre os presentes. Instintivamente, o padre Lusitano exclamou:

— Irmãos e irmãs, acabais de ser testemunhas da confirmação de uma mensagem provinda da Natureza que, como tudo, tem origem divina. E essa comunicação é a seguinte: de Espanha, não nos chega bom vento… nem, como diz o nosso povo, bom casamento. E “vox populi, vox Dei”, ou seja, a voz do povo é a voz de Deus! !!!

Como seria de esperar, esta intervenção desagradou, muitíssimo, aos fiéis, tendo sido o sacerdote, de novo, chamado pelo Bispo que o repreendeu, por ter repetido o erro, acabando por lhe dizer:

— Advirto-o, pela segunda e última vez, para não tornar a dizer nada em desabono dos nossos vizinhos ou do seu país. Se voltar a fazê-lo, não voltarei a falar consigo, mas garanto-lhe que sairá da actual paróquia e ser-lhe-á atribuída outra, onde não tornará a ouvir falar espanhol, mas irá ter muitas saudades do tempo em que o ouvia. E asseguro-lhe que não sairá de lá. Nem que que eu tenha de ir falar com o senhor Cardeal Patriarca, com quem tive a honra e o prazer de andar no Seminário. Vá-se embora, tenha juízo e que Deus o acompanhe.

O padre Lusitano, que gostava de exercer a sua acção pastoral, tentou levar uma vida normal e esquecer a sua animosidade para com os espanhóis. No mês de Abril, chegada a Páscoa, preparou, cuidadosamente, a homilia que iria proferir no domingo. Durante a missa, na devida altura, aproximou-se do ambão, olhou para os fiéis que enchiam o templo e disse-lhes:

— Irmãos e irmãs. Neste domingo de Páscoa, palavra que significa passagem e que dá o nome às festividades com que celebramos a passagem dos tempos de escravidão que os judeus viveram no Egipto, para a era de liberdade de que passaram a desfrutar na Terra Prometida, vou falar-vos da última celebração pascal do Mestre com os seus discípulos.

No primeiro dia da Festa dos Pães Ázimos, festa que dura sete dias e antecede a Páscoa, os discípulos perguntaram a Jesus onde é que ele queria que preparassem a refeição da Páscoa. Ele disse-lhes para irem ter com um determinado homem e que lhe comunicassem a sua seguinte mensagem: “O meu tempo está próximo; em tua casa celebrarei a Páscoa com os meus discípulos.” Eles assim fizeram e prepararam a Páscoa.

À tarde, Jesus sentou-se à mesa com os doze discípulos e, enquanto eles comiam, disse: Em verdade vos digo que um de vós me háde trair. Os discípulos ficaram muito tristes com o que acabavam de ouvir e começaram, um por um, a perguntar-lhe: “Porventura, sou eu, Senhor? E ele, respondendo a Simão, o primeiro à sua direita, disse: “Em ti confio, porque és a pedra sobre a qual será construída a minha Igreja.” (1) Todos os outros discípulos foram fazendo a mesma pergunta, recebendo a confiança do seu Mestre. Só faltava Judas Iscariote, para quem todos olhavam, suspeitosamente. E que disse ele, meus irmãos e irmãs? Perguntou ao Mestre, humildemente, “Porventura, serei eu, Rabi?”. Não, levantou-se e afirmou em voz bem alta e de forma peremptória (Neste momento, o Padre Lusitano, fez uma pausa, olhou para os fiéis e pronunciou, calma, pausada e claramente): “Seguro que no seré yo.”

Pobre padre Lusitano… passou o resto da sua vida activa paroquiando uma mão cheia de velhos sem forças para sair daquela terra de três meses de inverno e nove de inferno, onde até aos cardos era difícil florescer entre as pedras, mas só ouvindo falar a língua que aprendera da boca da sua mãe.

  1. Pedro tem origem na palavra latina petrus que significa pedra, numa tradução do aramaico cephas, uma das línguas faladas por Jesus. Este o motivo porque Simão passou a ser conhecido por Pedro.

* Licenciado em Línguas e Literaturas Modernas, Estudos Portugueses e Franceses, Técnico Superior Assessor Principal da Câmara de Aveiro – reformado (página do autor em Aveiro e Cultura)

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