Cultura (desportiva)

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Anadia, ação da candidatura a Capital Europeia do Desporto.

O ser humano é absolutamente impotente à nascença, permanecendo dependente de outros por muitos anos. Nesta ausência de instintos que direcionem o comportamento social, a herança cultural é um fulcro de aprendizagem na forma de agir, pensar e até sentir. A cultura é, portanto, um guia de comportamento (Laraia, 2003), consubstanciando as nossas ações através do que entendemos ser a socialização. Sistematizando, a cultura veicula pelo menos quatro evidentes vetores de influência social – valores, normas, símbolos e crenças (Vander-Zanden, 1965, citado por Phillips, 1993).

Por Aldo Costa *

O estudo das variações interculturais cresceu notoriamente depois da segunda Grande Guerra, essencialmente devido ao aumento dos fluxos migratórios, de comércio, de turismo e até da internacionalização do desporto. Encontramos nas décadas seguintes várias propostas de especialistas para a categorização transcultural. Qualquer que seja o padrão cultural que usemos, obter uma função orientadora (e de algum modo previsível) do comportamento humano é inequivocamente útil, dado que muitas vezes esse mesmo comportamento “de fundo” não é sequer percebido pelo próprio, embora tal seja socialmente exigido. Não obstante, é preciso reter que as interações culturais, para além de norteadas pelas raízes socioculturais, são também determinadas pelo o que é particular à personalidade de cada sujeito, pelo que se deve encarar com reserva a generalização baseada em estereótipos rígidos. Por isso, a cultura e a diversidade humana é simultaneamente um desafio e uma oportunidade (Thomas, 2018).

Numa leitura paralela a respeito da interessante discussão filosófica sobre o conceito de desporto e a sua interpretação como forma de arte, Devine e Frias [2020, citando Krein (2008) e Elcombe (2012)] referem que o desporto, tal como a arte, tem o potencial de transmitir valores e outros significados externos à sua mera prática, representando (ou apresentando uma alternativa) à cultura na qual os desportistas se inserem.

Partilhamos da mesma opinião, mas será legitimo questionar adicionalmente se o desporto, para além de promover vetores de influência social, pode (e deve) abraçar e reconfigurar o mundo que o envolve?

Na visão de alguns filósofos, o desporto é um fazedor de mundos (e.g., Krein, 2008 citado por Devine & Frias, 2020), e isso conduz-nos para a necessidade de aprofundar o seu significado. Todavia, a discussão hermenêutica não cabe neste texto. Por isso, vejamos o modo como a cultura é veiculada pelo desporto e alguns exemplos de como o desporto influenciou a sociedade.

Numa rápido vislumbre à história do desporto facilmente observamos como a cultura recorre ao desporto para nele refletir e expandir valores sociais emergentes – aliás, e como refere recentemente Pimenta, Ribeiro e Moreira (2022: 3), vale a pena lembrar “que o desporto como lazer ou como competição ou a prática desportiva ligada à educação e ao bem-estar do indivíduo, tem um histórico que remonta à Antiguidade, e conheceu um desenvolvimento renovado, intenso e diversificado enquanto fenómeno cultural e social, que muito aproveitou do papel da imprensa, com a institucionalização à escala mundial dos Jogos Olímpicos da Era Moderna”. Por via desse estímulo, assistimos à constituição das primeiras federações desportivas nacionais (entre 1800 e 1900), e à consequente internacionalização das regras e dos procedimentos pelas federações internacionais, o que por sua vez conduziu ao necessário entendimento de um ordenamento desportivo internacional. Aliás, é interessante verificar que alguns dos princípios internacionais que suportam este ordenamento (cf. Ramos, 2009) são baseados em construtos éticos e por assim dizer culturais. Por exemplo, quer o “princípio da universidade”, que consagra a acessibilidade do desporto a todos, quer o “princípio da não discriminação” (racial, política, económica e ideológica), são alicerces dos estados democráticos de direito, e constam em muitos diplomas constitucionais modernos e nos articulados estatutários de várias organizações desportivas e federações internacionais (Penteado, 2016). Reclamado pela Unesco[1], o caráter educativo e cultural do desporto é hoje reconhecido universalmente.

No século 20 assistimos a alguns exemplos paradigmáticos do modo como o desporto pode ser um instrumento de transformação social. Sobre este assunto vale a pena reler o volume editado por Mike Cronin e David Mayall (1998) que examina as diferentes formas como o desporto molda as experiências de grupos minoritários e de imigrantes e, em particular, a relação entre o desporto e a identidade étnica. Num dos capítulos, Joseph M. Bradley descreve como o futebol tem sido usado como condutor de preocupações sociais e políticas profundas por parte dos estados e no que se refere à identidade nacional. Referindo-se especificamente à origem imperialista na história britânica, o autor comenta que a subjugação política e económica da sociedade foi suplementada por forças culturais e ideológicas, entre as quais o desporto e a recreação. Apresenta-nos ainda o exemplo significativo de Espanha durante a ditadura de Francisco Franco, que durou 36 anos. O ditador usou os resultados desportivos do Real Madrid e da seleção nacional como fundamento da sua causa política – uma Espanha centralizada. Franco atacou culturas, símbolos e línguas regionais. Por efeito, e nas palavras do autor, a repressão alargada e profunda de um vasto número de contextos outrora neutros, adquiriu uma dimensão política e extra-cultural. Citando Medhusrt (1987), Bradley refere ainda que essa estratégia de centralismo cultural e linguístico do General Franco encontrou no futebol uma manifestação de rancor, passando este a assumir um contexto seguro para a expressão de visões e estados cívicos reprimidos – na região Catalunha e Basca, o Futbol Club Barcelona e o Atlético de Bilbao, respetivamente, passaram a ser o foco da identidade regional.

Mais recentemente, e por consequência da guerra da Ucrânia, salientamos a posição recente do Comité Olímpico Internacional (COI) sobre a participação de atletas russos e bielorrussos em competições internacionais. Cumprindo a Carta Olímpica[2], o COI recomenda a sua participação desde que o façam como atletas individuais neutros. Embora esta decisão tenha precedentes – como foi a participação de Timor-Leste nos Jogos Olímpicos de 2000, ou tem sido a participação de atletas refugiados nas últimas Olimpíadas – não deixa de ser uma contradição[3] entre o atrás citado princípio jurídico da não descriminação (de atletas, independentemente da sua nacionalidade) e a defesa da paz, em claro alinhamento com a ONU. Na mais importante competição desportiva do mundo, de suposto e exclusivo confronto entre atletas, eis a dimensão ética, política e cultural do desporto.

Importa agora clarificar o que entendemos por cultura desportiva – a forma com as pessoas percebem e valorizam o desporto na sua vida, se envolvem na sua prática, e como se relacionam como (e com) agentes desportivos (atletas, treinadores, espetadores, patrocinadores, dirigentes). Se olharmos, por exemplo, para o desafio da participação, quer no que se refere aos comportamentos regulares de prática de atividade física e desportiva da população, quer no número de praticantes desportivos nos diferentes escalões etários, facilmente encontramos determinantes culturais de base. Aí, talvez, a palavra “valorização” (do desporto) seja, de facto, a que melhor espelha o vetor cultural a que nos referimos, e quanto a isso podemos apontar pelo menos quatro exemplos: (i) a presença e a qualidade da educação física nas escolas, o que inclui a necessária articulação com o sistema desportivo; (ii) o reconhecimento social dos atletas, equipas e treinadores durante e após a carreira desportiva; (iii) o investimento financeiro, quer no apoio direto à massificação da prática e à preparação desportiva para o alto rendimento, quer na disponibilidade de infraestruturas de qualidade; (iv) um índice de prática formal e informal elevado.

Em Portugal a falta de cultura desportiva é reiteradamente apontada como a causa para a ineficácia de resultados, sejam eles desportivos ou de promoção da prática. Refletindo especificamente sobre os quatro de exemplos de valorização do desporto que atrás enunciamos, não temos muitas dúvidas[4]. Todavia, importa clarificar pelo menos uma pequena inconsistência na base desta afirmação. Ora o cidadão comum parece entender que o futebol é um reflexo suficiente do desporto que temos, opinião que está obviamente influenciada pela estratégia ofuscante da nossa comunicação social (e para isso precisamos apenas de consultar os jornais desportivos e generalistas nacionais). Por efeito, a nossa cultura futebolística, e não desportiva, é das mais expressivas do mundo, com evidências inequívocas de valorização social[5], de instrumentalização política e de valor económico incomparavelmente superior a qualquer outra modalidade desportiva. Assistimos a fenómenos culturais idênticos em países como o Brasil, Argentina, Espanha, ou Itália. Noutras modalidade desportivas, embora contraídas à sua dimensão menos internacional, existem outros exemplos interessantes – nos Estados Unidos e no Canadá a respeito do hóquei no gelo, e na Jamaica e no Quénia sobre a corrida de velocidade e de longa distância, respetivamente.

Em suma, uma combinação de elementos sociais, culturais e económicos catalisa a participação e o envolvimento massivo da população em torno desse desporto, o que resulta numa propensão elevada para resultados desportivos internacionais de relevo por muitas décadas (Norton, 2012). Isto faz-nos lembrar a definição de talento proposta Csikszentmihalyi et al. (1993: 23), argumentando que o talento é na realidade construído socialmente: “É um rótulo de aprovação que colocamos em traços que têm um valor positivo no contexto particular em que vivemos”. Entende Peter Tranckle & Christopher Cushion (2012: 266), de forma muito assertiva e eloquente, que “os talentos não existem no vácuo, mas na realidade”; o que significa que o talento só pode ser talento e reconhecido como tal onde é valorizado.

[1] Carta Internacional da Educação Física e do Desporto

[2] Consagrando o desporto como um direito humano, a participação de todos os atletas elegíveis deve ser assegurada.

[3] Enquanto são hasteadas bandeiras e se cantam hinos em todas os eventos, a participação destes atletas é permitida mas é inibida a afiliação nacional.

[4] Mais mais desenvolvimentos, consulte a secção “Politica Desportiva” que surge mais à frente neste capítulo.

[5] Por exemplo, observando por comparação com outras modalidades desportivas o número de praticantes formais e informais, de treinadores filiados, de clubes ou de adeptos.

* Presidente da Associação Portuguesa de Técnicos de Natação Artigo publicado originalmente no site Sportmagazine.

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